A porta estava entreaberta quando acordei. Lembro-me bem de tê-la fechado quando deitei para dormir, pois faço isso sempre. Não gosto de acordar durante a noite e ver o corredor escuro, como se fosse uma infinita estrada para o além. Sinto um terrível pavor de que a qualquer momento algo avançará da escuridão, entrará no quarto e saltará sobre a cama. Não sou a pessoa mais impressionada do mundo, mas com certeza tenho minhas manias. Ainda mais no momento e circunstâncias atuais em que vivo. Eu tenho certeza absoluta de ter ouvido o clique do trinco se fechando depois que empurrei a porta, logo depois de ir ao banheiro, quando entrei no quarto definitivamente para dormir. Da maneira que sempre faço, sem falhar.
Moro sozinho nessa casa enorme desde que Joana desapareceu com meus dois filhos. A partir daí, sinto algo negro crescendo dentro do meu peito, uma solidão tétrica e sem fim. Sinto falta do seu sorriso e de como a observava brincando com os garotos sobre o tapete de retalhos de couro em frente à lareira, lá embaixo. Agora estou aqui, na cama, quase paralisado, na noite mais escura da lua nova, onde nenhuma luz da noite, mínima que seja, entra pela janela. Olhando para a porta entreaberta, espero temerosamente que algo entre a qualquer momento. A casa é sólida como rocha maciça. Não produz por si só nenhum ruído, tornando as noites mudas como uma tumba a sete palmos da superfície.
Apertei o edredom com o máximo de força que consegui enquanto ouvi algo aterradoramente suave, quase imperceptível. Uma pequena movimentação de ar se aproxima da porta pelo lado de fora do quarto, entra pela fresta, cruza o quarto e ouriça os micropelos de meus ouvidos. Nesse momento lembro de como todas as maravilhosas cenas coloridas de alguns anos atrás mudaram repentinamente, sem explicação. Não consigo ver o motivo. Porque tudo tem um motivo, mesmo que não tenhamos a mais vaga ideia de qual é. A memória de nosso casamento no jardim florido de casa em plena primavera. O dia do nascimento do Mateus em que voamos pela estrada molhada porque ele resolveu se apressar. Característica que manteve em seu gênio até as mudanças antes do sumiço. Ou no aniversário de um ano do Augusto, quando Joana distraída deixou o garoto meter a mãozinha no bolo e sujar a cara inteira. Tudo morreu de uma hora para outra. As risadas cessaram, as brincadeiras pararam e o brilho se apagou. Ela vivia triste e quando não estava triste estava irritada. As crianças ficaram letárgicas e sem vida, sendo um espelho vivo refletindo a alma de Joana. Comportamentos estranhos ou inapropriados manifestaram-se frequentemente, mudando por completo a rotina de nossos dias. Nada fez o menor sentido.
A sombra dentro da sombra. É o que vejo neste exato momento pelo silencioso vão de alguns centímetros entre o batente e a porta. Tenho a constante impressão de vê-la balançar levemente. Deve ser só uma imagem impressa pela escuridão e o medo. Já não sei se a respiração que ouço vem de mim ou do que quer que seja que está lá atrás da porta entreaberta. Meus olhos estão arregalados no escuro tentando captar qualquer variação de luz que possa me dar uma dica do que eu penso estar vendo. Gostaria que fossem eles, mas sei que não são. É possível que o vazio deixado por Joana e os garotos tenha se tornado tão palpável assim? Ou tem algo nessa casa que não consigo compreender? O pavor se tornou real e concreto quando ouvi um sussurro bem atrás do meu ouvido esquerdo:
– Aroga ogimoc oãtse sele…
Tudo que consegui fazer é soltar o ar repentinamente e contrair ao máximo os músculos do abdômen e dos braços, pressionando-os contra meu corpo. Tenho certeza de que não está tudo em minha mente, pois senti o vapor quente da voz tocando minha orelha. Voltei imediatamente à oito meses atrás, quando o ar ficou mais frio sempre que chegava em casa cansado do trabalho. Tudo era cinza, e depois que eles se foram, se tornou obscuro como um filme noir. Talvez já estivesse aqui há muito tempo. Eu que não percebi. Pensando melhor agora, ironicamente cheio de pavor, passei a sentir coisas depois que fiquei sozinho. Um peso tenebroso sobre meus ombros, como se carregasse alguém sobre eles. Por diversas vezes tive que voltar ao passar pela porta de um dos diversos cômodos desta casa, pensando ter visto uma silhueta humana parada em um canto mal iluminado. Lembro também de ouvir algumas vezes passos duplos enquanto caminhava pelo assoalho de madeira do primeiro piso, uma sensação horrível de alguém colado ao meu corpo reproduzindo os meus movimentos com milésimos de segundos de atraso. Nunca pensei em algo que não fosse natural. Coloquei facilmente a culpa na saudade e na solidão.
Estou suando frio, exausto de contrair os músculos. Viro-me para ver o que me aterroriza. Rolo para o lado da cama de Joana e não tem nada, somente o toque do lençol gelado. O sussurro foi real. Tenho certeza absoluta. Torço para que esteja próximo do amanhecer, pois não vou conseguir voltar a dormir e tão pouco suporto mais este terror noturno. Minha respiração está completamente alterada, acelerada e com pausas intermitentes que não consigo controlar. Certo dia cheguei em casa e os garotos estavam no canto da sala de estudos, sentados no chão com as pernas cruzadas, virados para o canto da parede onde não havia nada de especial. Fiquei alguns minutos parado na porta observando aquele comportamento. Pareciam cochichar, mas não entre eles, pois nem se olhavam. Em dado momento, Mateus se move rapidamente, dando um tapinha em seu braço como se Augusto o estivesse cutucando, logo em seguida, Augusto faz o mesmo em sua própria nuca. A frequência aumentou até que ambos caíram no chão se debatendo e gritando para que o que quer que fosse parasse. Quando corri e cheguei para ajudá-los, simplesmente pararam. Aparentando que nada tinha acontecido e eu estivesse completamente maluco. Será que tenho passado por esses apagões também? Isolado e sem amigos. Não tenho ninguém próximo que tenha me observado por tempo suficiente para ver algo do tipo. Posso estar passando por este mal a meses e nem ter notado.
Deito-me de barriga para cima e me tapo até o nariz. Tentei fechar os olhos e rezar para dormir. Ou desmaiar. Que seja. Uma lágrima correu do meu olho direito em direção ao ouvido. Simplesmente não aguento mais isso. Abro os olhos novamente sem sucesso e percebo a porta balançar efetivamente. Não é mais uma impressão. Sei que algo passou por ali. Não dá mais, mas não irei a lugar algum. Não consigo sequer cogitar em levantar e sair porta afora, sinto cada membro do meu corpo pesando 50 quilos.
– Zev aus è aroga…
Escuto o sussurro novamente e então um toque molhado e gelado. Algo lambeu a palma do meu pé. Encolhi meus pés destapados o mais rápido que pude. Quando olho, posso apenas ver duas mãos com dedos esqueléticos, pretos como carvão, escorregando para baixo da cama. Agora estou como uma criança indefesa, sozinha e tremendo em posição fetal. Neste momento não sou mais um homem, capaz de defender a si e aos seus. Aliás, não pude fazer isso por minha família faz tempo. Não consegui ver o que estava acontecendo em minha própria casa, com minha mulher e meus dois garotinhos. Não sei o que poderia trazer tal mal para dentro do meu lar. Revisitando as famosas causas nos filmes de terror, não achei nada que remetesse remotamente a algo em minha vida pacata e isolada com Joana e as crianças. Nenhum objeto estranho, nem marcas e nem história. A casa é relativamente nova e o terreno nunca foi usado para nada antes. Tudo que posso fazer é me culpar. O que quer que seja que mudou e levou minha esposa e meus filhos, entrou na casa sem que eu saiba a razão. Agora vem me buscar da mesma forma. Um mistério sem solução. Apenas uma fatalidade em um mundo onde não compreendemos todas as regras com clareza. Uma família que é engolida pela terra sem deixar rastros. É o que dirão os jornais depois que os parentes próximos, tão distantes, se derem conta depois de meses que eu também desapareci. Se eles não perceberem minha ausência completa deste mundo, não será a polícia que simplesmente desistiu do caso e não está mais nem aí para mim.
Tudo que fiz nos últimos meses com a minha família foi levá-los e trazê-los de baterias de exames e psiquiatras. O que poderia fazer? Nada sentia de diferente, não compartilhava de suas sensações e a comunicação se perdera no mar de travas que se tornou o nosso lar. Observei covardemente a loucura transbordar a casa e simplesmente, sem prévio aviso, tudo silenciou. Uma etapa concluída para essa coisa? Um breve respiro depois de concluir uma tarefa, para só então partir para a próxima presa? Com os olhos cerrados com força, novamente sinto um deslocamento leve de ar no quarto. Mas não é apenas uma presença, me parece. Enquanto abro medrosamente um dos olhos, percebo três sombras ao meu redor sobre a cama. Sombras que mudam de forma e tamanho. O ar é gelado, mas denso. Difícil de respirar. Serão eles? Me observam silenciosamente. Com ódio? Com saudade? Em dor agonizante? Não sei. Só sei que chegou minha vez e em alguns segundos tudo terminará. Uma forma negra e maciça se ergue por trás das três sombras fumacentas, dois olhos diabólicos se abrem junto com uma boca profunda e vermelha como sangue. Um grito infernal e tudo acaba agora.