Marisa entra em casa com os dois meninos. Ela sobe as escadas a passos firmes, esbravejando, em direção ao seu quarto.
– Que falta de respeito! Quem ela pensa que é?
Os meninos sobem as escadas. Paulo vai para o seu quarto enquanto Marcos vai para a sala sentar-se na poltrona e refrescar-se na janela. Está um dia quente. Um movimento na frente de casa chama a sua atenção.
– Paulo, venha ver isto aqui, rápido! – grita Marcos para o seu irmão. Os dois começam a olhar pela janela da sala, que dá para a rua. Um enorme caminhão de mudanças começa a despejar estranhos objetos na casa da frente. Alguns deles, principalmente os maiores, cobertos por panos. Homens entram e saem do caminhão, cada vez carregando uma peça diferente. Em frente à casa, uma velha senhora observa o movimento, parada. Ela tinha uma aparência peculiar: traços indígenas, longos cabelos grisalhos, pele bastante enrugada, vestia um largo e velho vestido marrom e usava um chapéu preto esquisito que mais parecia um capuz.
A senhora vira o rosto e olha para a janela, em direção aos dois meninos. Sua expressão é ríspida. Ela cerra lentamente os seus olhos negros enquanto esboça um leve sorriso sarcástico, revelando a falta de alguns dentes frontais. Os dois arregalam os olhos de pavor, são crianças de apenas onze anos, fecham a veneziana da janela e saem correndo, gritando em direção ao quarto da mãe.
– Mãe!! Tem uma velha bruxa se mudando pra casa da frente, ela tá enchendo a casa de objetos medonhos e ficou nos encarando! – desabafa Marcos, apavorado.
– Calma, filho! A senhora comprou a casa da frente e está abrindo um antiquário. Sabe o que é? É uma casa aonde vendem objetos antigos, relíquias, raridades. Podemos visitar a loja quando estiver pronta, você vai gostar. E vai ver também que ela não tem nada de bruxa. – disse Marisa, tranquilizando os meninos.
Mais calmos, eles descem as escadas e se dirigem para o pátio nos fundos da casa para brincar. Há um velho chafariz lá, que apesar de estar cheio de água, não funciona há anos. Paulo coloca um barquinho de plástico na água e eles começam a observá-lo boiar e imitar barulhos de navio com a boca. Quando o brinquedo chega a outra extremidade, os dois olham para baixo e observam seus reflexos na água do chafariz.
– Você está gordo! – diz Paulo a seu irmão.
– E você parece um morto de fome! – retruca Marcos.
Eles dão risadas e brincam por mais um tempo. Até que Marcos olha pra cima e fala:
– Nossa, já anoiteceu, vamos entrar, a mãe deve estar preocupada.
– Como assim, Marcos? Ainda está claro o dia, estamos brincando aqui faz pouco tempo. – retruca Paulo, inconformado com a afirmação do irmão.
Marisa os chama para comerem um lanche da tarde como era costume na família.
– Viu, seu bocó! Ainda é de tarde. – implica Paulo, enquanto os dois entram em casa. Um bolo de laranja e uma jarra de chocolate quente os aguardava na mesa.
Eles pegam pratos, talheres e copos no armário da cozinha, sentam-se à mesa e começam a servir-se. Paulo começa a comer desesperadamente. Enquanto já havia devorado duas fatias inteiras do bolo e bebido um copo e meio do chocolate quente, Marcos estava apenas comendo a sua primeira fatia e nem havia tocado na bebida. Este, olha espantado para a voracidade do irmão. Paulo se dá conta e, então, responde:
– Estou sentindo frio, acho que isto me deu fome.
– Como pode estar com frio? Hoje está quente e estamos no verão. Eu estou até suando. Você é estranho! – diz Marcos, debochando do irmão, mas sem compreender suas atitudes.
Depois de algumas implicações e deboches, Marcos sobe para o seu quarto. Paulo diz estar cansado e fica no andar de baixo, deitado no sofá da sala de estar. Os dois adormecem, cada um em uma peça da casa.
Ouvem-se batidas de tambor. São tambores indígenas. O som vai aumentando e agora é acompanhado de cânticos antigos. Parece um ritual, vai ficando mais intenso tanto nas batidas quanto no canto. De repente todo o som cessa. Ouve-se um imponente rugido de algum animal selvagem. Marcos acorda, quase pulando da cama. O menino está suado e ofegante. Levanta-se, pega sua camiseta que estava pendurada no cabideiro para vestir. Ao vesti-la, nota que está apertada. Ele não entende, pois estava vestindo esta mesma camiseta antes de deitar-se e estava folgada. Olha para o espelho atrás da porta do seu quarto, que encontra-se entreaberta. Fica abismado com o que o reflexo lhe mostra: está mais gordo, muito mais gordo do que quando se deitou. O garoto mal tocou no seu lanche da tarde e, no entanto, sua camiseta está justa a ponto de marcar toda a sua região abdominal. O seu rosto está redondo, com enormes e vermelhas bochechas. Suado, com uns oito quilos mais gordo em questão de duas horas, Marcos fica paralisado olhando para o espelho, sem entender o que está acontecendo. Aos poucos, a sua imagem vai sumindo no reflexo, o espelho vai escurecendo, adquirindo um tom fumegante. A sua imagem está quase sumindo e começa a aparecer uma forma diferente. O menino olha fixamente, sem conseguir piscar. A forma vai se moldando em um animal. É uma onça, uma enorme onça. Suas cores vão ficando mais vívidas: a pelagem parece brasa ardente, suas pintas são pretas como uma noite sem luar, seus olhos amarelados e ameaçadores o encaram fixamente. A onça refletida no espelho vai andando lentamente em direção a Marcos, que mantém-se imóvel. O garoto, então, consegue soltar o grito preso na garganta. Quando a onça se posiciona para saltar sobre ele, abre-se a porta e violentamente ela bate na parede, cortando subitamente o contato de Marcos com o espelho. Era Paulo, que, aparentemente salva seu irmão. Ao contrário de Marcos, ele estava com uma aparência esquálida, muito magra, como se não comesse há vários dias.
– Eu também vi ela! Acordei no sofá escutando barulhos de tambor, fui ao banheiro e ela estava lá, no espelho. Marcos, o que está acontecendo? – pergunta Paulo, assustado e choramingando.
Os dois garotos correm para o quarto da mãe. Marisa estava atravessando um terrível quadro de depressão depois que o pai dos garotos pediu o divórcio repentinamente. Paulo abre a porta e grita para sua mãe acordar. Esta, abre os olhos vagarosamente, olha na direção dos meninos, fecha os olhos, vira-se de lado na cama e volta a dormir. Ela tinha tomado recentemente uma alta dose de Rivotril. Os meninos sabem do sofrimento que a mãe está passando, entendem e respeitam a sua privacidade, mas agora é uma questão de urgência. Tentam acordá-la de várias formas, mas, infelizmente, é inútil. Marisa está derrubada. Os meninos se deitam na cama ao lado da mãe, começam a olhar para cima e tentar encontrar alguma explicação lógica para o que está acontecendo.
Marcos tira a camiseta, está suando demais. Paulo, ao contrário, está com frio e se cobre junto com sua mãe. Seu rosto está definhando mais a cada minuto. Reclama de fome. Marcos, preocupado com a aparência do irmão, diz que vai à cozinha pegar algo para ele comer. Mesmo assustado com toda esta insólita situação, o garoto sente que se não fizer por si, ninguém o fará.
A criança desce as escadas, entra na cozinha e abre a geladeira. Se depara com uma jarra de água e vê seu reflexo através dela. Ele tem a impressão de estar com o rosto magro, como o do seu irmão, mas, sabendo que um reflexo em uma jarra de vidro cilíndrica não é muito confiável, corre para o espelho do banheiro. Ao olhar sua imagem no espelho, se dá conta que o reflexo da jarra mostrava o correto: agora Marcos é quem está com o rosto definhado, quase cadavérico. Seu estômago ronca, ele é tomado por uma fome absurda. Mas, se controla e sai correndo com o intuito de subir as escadas ao encontro de seu irmão. Ao passar ao lado da porta de vidro que dá para o pátio, ele para. Vira-se para a porta e caminha lentamente em direção a ela. Olha para cima, buscando o céu. Para mais uma surpresa, o sol brilha forte lá fora. Há poucos minutos era noite, como pode agora ser dia? Marcos olha para o relógio do microondas: 21h31. O céu realmente deveria estar escuro nesta hora.
Correndo para o andar de cima, Marcos chega no quarto da sua mãe e olha para Paulo. Ele está gordo, vertendo suor pelo corpo todo, como Marcos estava há pouco tempo atrás. Paulo se levanta da cama, mais assustado ainda, anda na direção do irmão e os dois começam a se olhar, frente a frente. Ficam se olhando, boquiabertos, como se não soubessem mais quem é quem. Uma confusão mental toma conta dos pobres meninos. Se olhando nos olhos, Paulo enxerga o seu reflexo nos olhos de Marcos e vice versa. O reflexo de repente se transforma na imagem da velha senhora da casa da frente. É como se a velha estivesse olhando para cada um deles, através dos olhos do outro. Ela, entã0, abre a boca e solta uma risada assustadora, semelhante à risada de uma bruxa. Os dois pulam para trás em um momento de extremo pavor, caem no chão e desmaiam.
– Marcos! Paulo! Marcos! Paulo! – os meninos vão aos poucos recobrando a consciência escutando sua mãe os chamar desesperada.
– O que aconteceu? – pergunta ela, angustiada. Os dois garotos se olham e notam que suas aparências parecem ter voltado ao normal. Nenhum gordo demais, nenhum magro demais, nenhum com muito frio e nem muito calor. São 8h47 da manhã e os dois veem o dia iluminado. Paulo apenas responde:
– Mãe, nós precisamos ir à casa da vizinha, a velha senhora do antiquário. Por favor, é uma emergência.
Marisa não entende nada, mas tem notado um comportamento estranho nos meninos, o qual já era esperado devido ao repentino divórcio. Ela, então, topa. Pede apenas alguns minutos para se arrumar.
Os dois vão olhar pela janela da sala. Dois homens carregam um enorme objeto envolto em panos para dentro do antiquário. Logo depois, o caminhão parte e os meninos conseguem ver que o antiquário já está com a fachada pronta e colocada acima da porta de entrada. Antiquário Aztlan, diz na fachada. Eles enxergam a senhora lá dentro tirando o pó deste último objeto, enorme, que está pendurado na parede lateral da loja, mas não conseguem identificar o que é, dali da janela. Desta vez, a senhora não parece ser tão ameaçadora aos olhos deles. É apenas uma humilde senhora trabalhando em sua loja, feliz e ansiosa para inaugurá-la. Então, os dois começam a se perguntar se tudo o que passaram no dia anterior não teria sido um pesadelo, ou fruto de suas imaginações, após ficarem imaginando que a vizinha seria uma bruxa. Enfim, eles se sentiam aliviados e até curiosos para conhecerem o lugar com a mãe.
Marisa está pronta e eles, então, saem de casa em direção à loja da vizinha, do outro lado da rua. Marisa abre a porta, cumprimenta a senhora e pergunta se pode entrar para dar uma olhada. A senhora sorri e faz um sinal positivo com a cabeça. Os meninos entram logo atrás. Há itens realmente muito curiosos expostos na loja, na sua maioria, relacionados a civilizações mesoamericanas, como os Astecas. A mãe se admira com a sessão de artesanato e fica olhando, pegando e analisando algumas peças. Os meninos olham um pouco de tudo. O que lhes chama mais a atenção são algumas peças de cerâmica com caras e corpos de animais. Paulo olha para a parede lateral e então, vê o tal objeto que fora o último a sair do caminhão de mudança. Chama a atenção de Marcos para olhar. Trata-se de um grande espelho ovalado, com a altura aproximada de uns dois metros, todo adornado em volta. O espelho é escuro, um tom fumegante.
– Que espelho é esse? – pergunta Paulo, à velha senhora. Ela olha para o objeto e fica reticente por alguns segundos.
– Este é o espelho sagrado de Tezcatlipoca, um dos mais poderosos deuses Astecas. Ele é o deus do céu noturno e do fogo. À noite, se transforma em uma grande onça e consegue enxergar e vigiar as consciências dos homens através deste espelho. Portanto, este item é apenas para ser observado de longe. Não está à venda e não deve ser tocado de maneira alguma. – responde a senhora em um tom nada amigável.
Os meninos ficam um pouco assustados e olham para a sua mãe. Ela, que também escutou a explicação da senhora, sorri para eles e faz um gesto com a mão como quem diz para não se preocuparem, que era apenas uma superstição sem sentido. Confiantes em sua mãe, os garotos voltam a sua atenção a outros itens.
Em frente ao espelho, em cima de um balcão, Marcos vê uma curiosa garrafa de cerâmica com uma tampa embutida. A garrafa é toda trabalhada com formas que lembram penas no entorno e a tampa tem o formato da cabeça de uma coruja. Ele tenta tirar a tampa e não consegue. Então, pede para Paulo segurar a garrafa firme enquanto puxa a tampa com as duas mãos. Paulo segura e Marcos começa a puxar. A tampa parece presa na garrafa, mas os meninos insistem em tentar tirá-la. Marcos respira fundo e coloca mais força no movimento. A garrafa, então, escapa das mãos de Paulo e consequentemente das mãos de Marcos e voa com força. Ela bate bem no meio do espelho de Tezcatlipoca e o racha. A rachadura, no sentido vertical, vai de uma ponta a outra do objeto. No centro, outras pequenas rachaduras e algumas partes levemente quebradas. Os meninos ficam estáticos, com os olhos arregalados e um sorriso amarelo, expressão de quem sabe que fez besteira.
A velha senhora, que estava limpando alguns itens, se vira com um olhar sério e uma cara sisuda. Caminha em direção aos garotos e aponta-lhes o dedo.
– Você quebrou o espelho sagrado de Tezcatlipoca! Uma maldição agora será incorporada a sua vida. Da forma como permanece o espelho, sua vida será dividida, rachada, quebrada. Dias se confundirão com noites, haverá fome e fartura, frio e calor. Assim como o reflexo de um espelho, a sua vivência incidirá em um ponto e então retornará em um looping infinito, contraditório e caótico. – vocifera a velha senhora, como se estivesse praguejando sob o menino, com um entoar de voz firme e aterrador. Mãe e filho ficam olhando para ela, atônitos.
– Venha, Marcos Paulo, vamos sair deste lugar. – diz Marisa, furiosa com a forma com que a senhora tratou o seu filho. Os dois saem da loja e se dirigem para a sua casa, sem olharem para trás.