De acordo com Talena, todos escondiam um segredo, fosse ele pequeno ou não, sombrio ou apenas estranho, contudo, nada poderia prepará-la para o segredo descoberto naquela noite. Nada.
Residente da pequena cidade de Black Marble, a jovem Talena Morgan, filha de um repórter investigativo e uma enfermeira, criava teorias absurdas sobre os residentes dos subúrbios pacatos. Talvez fosse um meio de matar o tédio, talvez ela fosse igual a seu pai, mas para todos na pequena cidade, Talena, com suas mechas vermelhas e piercings por todo o rosto, era uma encrenqueira maluca.
Em seu santuário escuro, repleto de colagens, artigos escritos por seu pai e teorias insanas, Lena jogava seu Nintendo 64 fervorosamente, afinal, era seu único amigo naquela cidade enfadonha. Repentinamente, Lena começou a ouvir batidas em sua porta, talvez fosse seu pai, já que sua mãe trabalhava até tarde no hospital.
Ao correr até a porta feito um raio, Talena a abriu, e, para sua surpresa, não era seu pai.
— O… Olá. — disse um senhor de aparência estranha, a pele em seu rosto parecia levemente esticada, e em suas mãos havia uma pequena caixa.
— Oi… — Lena olhou para o senhor com estranheza. — Como posso ajudar? — ela perguntou.
O senhor não respondeu, apenas ficou olhando para Talena, provavelmente a julgando. A jovem, por outro lado, notou que o carro do senhor estava abarrotado com caixas.
“Não creio que o vovô morte vai ser meu vizinho.” A jovem pensou enquanto analisava o carro, porém, o senhor reagiu a seu pensamento, lançando um sorriso largo.
— Bem, você vai me ajudar a colocar as coisas em casa ou não? — o senhor perguntou, ainda sorridente. — Meu nome é Boris, aliás! — disse calmamente ao se virar e caminhar até o carro.
Por algum motivo, Talena o acompanhou e começou a retirar caixa por caixa. A princípio, Boris parecia ser apenas um velho esquisito, mas chegando nas últimas caixas, Lena percebeu que continham roupas femininas, vestidos infantis, perucas e um saco de pano terrivelmente fedido. Sabe-se lá o que aquilo guardava, mas cheirava a morte.
— O senhor mora sozinho? — ela questionou e imediatamente se arrependeu da pergunta.
— Sim, so… Sozinho. — retrucou Boris, sua feição parecia ainda mais bisonha agora por algum motivo.
Felizmente, Waylon, pai de Talena, chegou em casa.
— Ah, fez um amigo, filha? — perguntou, acenando para Boris.
— É o novo vizinho, pai, o Boris. — Lena respondeu, implorando para sair daquela situação com o olhar.
— Por que não vai lá pra casa e prepara uma limonada pra gente, filha? Eu ajudo o garanhão aqui. — afirmou Waylon.
Talena assentiu com a cabeça e saiu correndo dali, seu coração batia de forma tão intensa e apavorada que parecia rasgar seu peito.
Após alguns minutos, seu pai finalmente voltou.
— Que foi, filha? — ele perguntou, preocupado.
— Acho que nosso vizinho é um assassino em série. — Lena murmurou, não poderia estar sendo mais sincera.
— Filha… — Waylon mexeu em seus óculos e pôs as mãos na cabeça — O que você viu? Ele falou alguma coisa para você? — o homem parecia extremamente preocupado dessa vez.
— Nada, pai. — ela murmurou — Mas ele tinha umas coisas estranhas na caixa, roupas de criança, perucas, sabe? — a jovem explicou, perturbada.
Waylon não disse nada, mas por sua expressão, dava para saber que estava assustado. Sua pele, que já era um tanto vampírica, agora estava quase translúcida.
— Pai? Eu não tô mentindo. — Lena baixou a cabeça, seu pai andava em círculos, até que então, parou e olhou para a sua filha.
— Talena, me escuta, vou investigar esse assunto, tudo bem? — tentou sorrir, mas o medo do que poderia ter acontecido era maior — Não saia de casa, e por favor, não faça nada até eu confirmar tudo isso que você me falou! — ele disse, e imediatamente saiu novamente, levando as chaves de casa consigo.
Lena pensou em olhar pela janela, mas a imagem sórdida de Boris invadiu seu subconsciente, fazendo-a correr direto para o quarto.
“Vamos jogar e jogar. E esquecer de tudo!” a jovem repetia mentalmente seu mantra.
O dia, que já era atípico, tornou-se verdadeiramente bizarro quando Lena, em uma súbita fadiga, adormeceu com o desconfortável controle em suas mãos. Ao acordar, a penumbra lhe dava boas vindas, podiam ser dez horas, mas também podiam ser duas, quatro da manhã, Lena só saberia se fosse até a sala, onde o relógio ficava.
O chão rangia a cada passo dado pela jovem, e ela, que amava o silêncio, mataria para ouvir a voz de seus pais novamente. Apesar de querer ser tratada como adulta, Talena tinha apenas 14 anos e no fundo sabia que era só uma garota indefesa, não só indefesa, como sozinha, também, completamente sozinha.
Enfim, ela estava na sala de estar, e ao olhar para o relógio, notou que era pouco mais de uma hora da manhã. A ausência de sua mãe não a preocupava tanto, pois às vezes só voltava pela manhã, mas seu pai era outra história, não fazia sentido ele ainda não ter voltado, não havia explicação racional para aquilo.
Racional, talvez não houvesse, mas explicações irracionais vinham em ondas violentas naquele momento. Até que de repente, um som inexplicável violou os tímpanos de Talena, que não sabia o que fazer. Suas pernas tremiam, o suor parecia gelo puro escorrendo por entre sua clavícula e o pior veio logo em seguida. Ao bater seus olhos na janela da cozinha, Talena pôde ver uma silhueta, estava ali, estática, apenas existindo, encarando, analisando sua presa como um leão esfomeado.
Naquele momento, Talena não sabia o que pensar, o que fazer, ela só sabia de uma coisa: a morte pairava sob sua cabeça agora e não havia escapatória.
Dez horas antes
Após deixar sua filha, Waylon correu até a delegacia de Black Marble, onde possuía alguns contatos.
— Sr. Waylon, olá! — exclamou Lucy, a recepcionista, com um sorriso apaixonado.
— Oi, Lucy. — tirou seus óculos e os limpou em sua camisa de flanela — O xerife está? Preciso discutir um assunto sério. — suspirou de modo cansado.
— Sim, na sala dele. — Lucy notou o medo e a preocupação em seu olhar. — Aconteceu alguma coisa? — ela perguntou, mordendo sua caneta ansiosamente.
— Sim, Lucy, você me faz um favor? Manda uma viatura para a minha casa?! Depois te explico. — proferiu rapidamente e correu em direção a sala do xerife.
Sem bater, Waylon entrou na sala do xerife.
— Jesus, Maria e José! — exclamou o xerife. — Está querendo me dar outro infarto? — ele gritou.
— Precisamos conversar, Xerife Frost. — Waylon disse, sem fôlego.
A par de toda a situação, Waylon recebeu autorização do xerife para utilizar o computador da delegacia, a tecnologia ainda era arcaica, mas dava para o gasto. Com algumas horas de investigação, Waylon e o xerife encontraram algo perturbador.
— Isso… isso está errado, não está? Você e sua filha estão gozando com a minha cara! — o xerife gritava, incrédulo.
Waylon estava igualmente incrédulo, pois em um antigo relatório policial da cidade vizinha, Neon Valley, dizia que Boris já estava morto há alguns anos.
— Não sei que porra tá acontecendo, mas precisamos pegar esse cara agora!! — Waylon gritou.
No entanto, os planos para aquele dia eram bem diferentes, pois assim que saíram da sala, a energia elétrica caiu.
— Tá de brincadeira… — reclamou o xerife. — Lucy! James! Vocês podem verificar o que aconteceu com a luz, pelo amor de Deus?! — gritou, mas não teve resposta.
Como a sala onde ficava o computador era afastada do resto da delegacia, Waylon e Frost tinham que seguir por um longo corredor até chegarem em alguma área que continham janelas, ou melhor dizendo, luz.
Mas nada disso aconteceu, pois no meio do corredor, Lucy realizava um ato estranho, difícil de ver por conta da escuridão, mas ao acender uma lanterna em sua direção, ambos ficaram mortificados com a cena.
Lucy estava nua, ensanguentada, com o cadáver do oficial James estirado no chão, e ao virar-se, sua feição já não era mais a mesma, A pele suave, bem cuidada, os longos fios loiros, todos os traços de Lucy estavam sendo substituídos de uma forma bizarra pelos de James. Era repugnante, era horrível, e definitivamente não era humano.
Apavorado, o xerife caiu no chão como um saco de batatas e Waylon tentou fugir, mas não teve sorte alguma, pois o que quer que tinha tomado conta do corpo de Lucy, controlava boa parte da cidade agora.
— Não adianta fugir, meu doce Waylon. — disse uma voz familiar, era sua esposa, não, era algo vestindo o corpo dela.
E assim, a invasão dos assimiladores começou.
Ouroboros
Com o coração saindo pela boca, Talena chorava, aceitando uma morte certa e dolorosa e com seus olhos, até então, inocentes, fechados, ela ouviu um estouro ensurdecedor, seguido pelo som da janela se partindo em diversos pedaços.
— Temos uma testemunha, chefe. — afirmou uma voz feminina.
Ao abrir os olhos, Talena se deparou com uma mulher de pele escura e cabelo curto, usando um terno preto, em suas mãos, uma escopeta de cano serrado.
— Quem… quem é você? O que está acontecendo? Cadê o meu pai?! — Talena gritou.
A voz que passava instruções à mulher misteriosa lhe disse algo, e então, a mulher apenas sorriu.