A garota deslizou levemente os dedos pela pele áspera do lado direito do rosto e cerrou os dentes, como sempre fazia todas as vezes que se olhava no espelho. Tentou pegar uma mecha de cabelo e cobrir aquelas cicatrizes horríveis que manchavam seu rosto e sua alma. Sem sucesso.
Era a mesma velha história de sempre. As outras crianças sempre tiveram medo dela. Os adultos se afastavam, cochichando e entreolhando. Os pais até chamaram um padre para benzê-la por ter nascido com aquelas cicatrizes. Como se fosse culpa dela.
Amaldiçoada. Endemoniada. Eles diziam. Mas nem mesmo eles foram capazes de tirar o diabo dela.
Ela nem mesmo podia acompanhar os pais na igreja aos domingos, ou sequer andar nas ruas sem ouvir cochichos ou notar semblantes de desprezo. Por isso, buscar mantimentos na taverna do homem mais abastado do vilarejo ao entardecer era a sua melhor opção naquele momento. Ninguém nas ruas, sem olhares indiscretos.
Ainda assim, a jovem se surpreendeu quando viu Daisy Harris, Willow Hawkings e Lucy Smith, que acenaram assim que a viram, o que a fez desacelerar os passos, especialmente porque o trio costumava se afastar, fazer caretas ou falar insultos contra ela. Daisy, a loira esnobe que sempre exibia tranças muito bem feitas, mas que agora a fitava com amenidade; Willow, o abastado moreno de sorriso convincente, que a encarava com certa malícia no olhar; e Lucy, a ruiva pobretona que se escorava nos mais fortes socialmente como um carrapato em busca de vantagem, mas que naquele momento olhava para ela do jeito mais simpático que ela já viu. A garota apertou as unhas nas palmas das mãos.
— Hazel! Como está indo esta noite? Estávamos mesmo indo até a sua casa! — disse Daisy, animada e com o sorriso congelado de sempre.
— Queríamos compartilhar uma coisa com você — Willow sorriu, misterioso, trocando um sorriso com Daisy.
— Por que não vem com a gente? Está uma noite tão agradável… — comentou Daisy.
— Não sei se seria apropriado — gaguejou Hazel, receosa. — Meus pais estão voltando da igreja.
O semblante de Lucy se entristeceu.
— Só queríamos que se divertisse com a gente… sei que deve pensar que somos uns monstros como todos da vizinhança — ela olhou para os amigos em busca de apoio, que concordaram com a cabeça. — É, só que… tínhamos medo do que nossos pais iriam achar! Eles sempre disseram para ficar longe de você.
— É, até mesmo nos eventos sociais e na igreja! — completou Willow.
— Eu sempre me senti tão mal vendo você tão sozinha. — confessou Lucy.
— Queremos que veja uma coisa com a gente — contou Willow. — Garanto que vamos nos divertir muito, não é, meninas?
Lucy e Daisy acenaram com a cabeça.
Hazel olhou as tochas iluminarem os arredores da vila à medida que o anoitecer tomava conta do lugar. Os sapos e grilos começavam a fazer seus barulhos enquanto os moradores retornavam para suas casas. Ela nunca havia recebido um convite como aquele, ainda mais do trio. Nunca havia saído para brincar com amigos; nunca havia passado um tempo considerável como uma jovem normal. Ela merecia aquilo. Pelo menos uma vez.
— Tudo bem. Vamos! — ela sorriu do jeito mais honesto que já havia feito na vida.
Lucy puxou sua mão e o grupo seguiu em direção à sombria floresta que rodeava vilarejo; o lugar onde os adultos sempre alertavam que adolescentes como eles não deveriam ir, principalmente à noite. Mas eles eram jovens e inconsequentes, e Hazel, pela primeira vez, não sabia direito onde estava se metendo.
Um forte senso de desconfiança começou a tomar conta de Hazel. Ela não era amiga daquelas pessoas. Eles mal a encaravam quando passava pela rua. Mal a notavam no mercado. Seus pais baixavam os olhos e apertavam as mãos de seus filhos quando ela estava por perto.
Ela só não sabia que iria descobrir muito em breve.
— O que estamos indo ver na floresta? — ela se deu conta de que não havia perguntado.
— Sabe que estamos perto do inverno, não é? — lembrou Daisy, se virando brevemente para olhá-la. — Nós encontramos uma família de cervos bem perto daqui enquanto caminhávamos.
— Eles são criaturas esplendorosas! — exclamou Lucy, caminhando ao lado dela. — Vamos ficar com eles, Will? Podemos colocá-los na sua fazenda! — sugeriu ela, o que arrancou uma risada de Willow. — Podíamos visitá-los e brincar com eles! Não é, Hazel?
— Eles provavelmente iriam se assustar com as cicatrizes — murmurou Daisy, rindo baixinho em seguida da própria piada.
Os passos de Hazel vacilaram por um instante. A loira se deu conta de que foi ouvida e arregalou os olhos.
— Me perdoe, Hazel, eu… não quis dizer… — ela fechou os olhos e engoliu em seco. — Foi só… o costume — ela murchou os ombros.
Hazel teve o impulso de abaixar a cabeça e se ofender com o comentário, mas estava tão feliz por finalmente passar um tempo com pessoas que queriam estar perto dela, que resolveu deixar passar. Aquele pensamento logo fugiu da sua mente enquanto sentia as palmas dos pés começarem a reclamar da caminhada. A floresta parecia ainda mais escura e eles só não se perdiam na mata por conta da tocha acesa que Willow carregava. Hazel esfregou os braços, sentindo arrepios por causa do frio noturno.
— Já estamos chegando? — ela quis saber. — Só estou perguntando porque nossos pais já devem estar preocupados.
Passaram-se segundos e o trio apenas continuou andando como se não tivessem ouvido.
— Lucy? — ela chamou, insistindo. — Willow? Daisy? O que está havendo? Para onde estão me levando?
Ela notou que eles se aproximavam de uma espécie de clareira, onde a luz da lua brilhava sobre os galhos das árvores de um jeito quase fantasmagórico. Ela observou alguns corvos pousarem próximos deles e grasnarem, como se anunciassem a sua chegada. E pelo que Hazel conhecia das lendas passadas de geração em geração na vila, corvos nunca eram um bom sinal.
— Que lugar é esse?! — berrou ela, assustada.
Lucy e Daisy se entreolharam, sorrindo, enquanto Willow seguiu mais à frente iluminando com a tocha e começou a gargalhar de um jeito diabólico.
— Sabe, Hazel, eu sempre achei as suas cicatrizes… — ele se virou lentamente, encarando-a com a mais pura repulsa que ela conhecia — a coisa mais nojenta que eu já vi.
As garotas gargalharam alto.
— Sempre me dá vontade de vomitar toda vez que eu olho para você. — ele continuou.
As pernas de Hazel tremiam e as lágrimas começaram a se acumular no canto de seus olhos. Ela olhou para as meninas, que antes esboçavam amizade e compreensão, agora expressavam desprezo e superioridade.
— Não tem cervo nenhum, sua tola! — riu Daisy.
— Você é tão burra! — Lucy aumentou o sorriso.
— Eu… eu quero ir para casa! — Hazel murmurou, abraçando o próprio corpo.
Mas antes que pudesse se mexer, Lucy e Daisy a agarraram pelos braços e a arrastaram até uma árvore próxima, ao mesmo tempo que a garota se debatia e tentava se soltar.
— Parem! Parem! Por favor, estão me machucando! Por que estão fazendo isso?!
Em meio aos berros de desespero, a garota foi amarrada à árvore e foi colocado um saco em sua cabeça. Ela estava tão distraída, que nem havia notado que os objetos já estavam ali quando eles chegaram. Sua tola! Eles planejaram tudo! – ela pensou enquanto ouvia o trio repetir a palavra “corvo” sem parar em meio à risadas. As cordas foram apertadas ao encontro de seu corpo com brutalidade e a jovem podia sentir a aspereza do objeto, que parecia rasgar e arranhar sua pele e liberar pequenos filetes de sangue. O saco em sua cabeça limitava a sua respiração, que já estava ofegante, e cheirava à estrume de cavalo, o que a fez reter uma ânsia de vômito conforme seu estômago revirava. Hazel começou a perder a voz e aos poucos se calou, se entregando à dor e à humilhação. Ela não proferiu mais nenhum som, nem mesmo quando o trio decidiu abandoná-la e largá-la na floresta escura, sozinha. Nem sequer chorou ou gritou.
Mas, naquela mesma noite, um sentimento estranho tomou conta de Lucy enquanto jantava à mesa com seus pais. Ela sabia que o som dos gritos de Hazel iriam assombrá-la quando dormisse. Remoída por um remorso repentino, ela confessou o que fez, esperando que a jovem ainda pudesse ser salva.
— Ela ainda deve estar lá — deduziu o pai, coçando a barba ruiva, já se levantando e em seguida, pegando seu longo casaco escuro. — Vamos achá-la! — o pai foi tomado por uma repentina sensação de insegurança e até pena pela garota. Apesar de tudo, sua alma merecia ser salva, como a de todos na vila. Mesmo que já tivesse se encontrado com a jovem Hazel e sua família e agisse como todos na vila, ele repudiava a atitude da filha e dos amigos. Salvá-la de uma floresta escura era o mínimo que ele poderia fazer pela salvação da sua alma.
O pai de Lucy não demorou a juntar todo o vilarejo armados com tochas e foices até a floresta escura no local que a filha indicara. Lucy tremia enquanto esfregava os braços em uma tentativa de afastar o frio e sua culpa. E se Hazel estivesse morta? E se estivesse perdida? E se algum animal a tivesse atacado ou arrastado para mais fundo da floresta? E se ela decidisse fazer alguma coisa? Como ela olharia nos olhos dos pais dela agora? Ela virou levemente a cabeça e os viu, abraçados um no outro com os olhos pesados, apenas seguindo o grupo sem rumo. Como tinha sido tola.
À medida que se aproximavam, o coração de Lucy parecia bater mais e mais rápido. A floresta pareceu mais silenciosa de repente. Nenhum som dos corvos. Nenhum sinal de qualquer outro animal. Ela olhou e se deparou com Willow e Daisy, tão abalados quanto ela. O rosto de Daisy estava branco como o de uma vela, enquanto Willow parecia querer se jogar dentro do poço do vilarejo a qualquer momento.
Porém, todos foram surpreendidos ao se depararem apenas com as cordas que eles haviam usado, intactas, o mesmo saco, porém encharcado em sangue fresco, e centenas de milhares de penas de corvos espalhadas ao redor.
O trio se entreolhou e se arrepiou por inteiro.
O pai de Hazel atravessou a multidão aos prantos e caiu de joelhos enquanto pegava e segurava com força o saco ensanguentado. Ele o pressionou contra seu rosto banhado em lágrimas enquanto emitia um berro de dor e puro ódio. O homem então encarou o pai de Lucy de um jeito quase demoníaco. Uma ventania repentina passou por eles, o que pareceu balançar de leve as milhares de tochas acesas no vilarejo naquela noite.
Dias logo se tornaram semanas no que viria a ser o caso de desaparecimento mais macabro que aquele lugar já testemunhou. Não havia sequer nenhuma pista do paradeiro de Hazel Green. Nem mesmo haviam achado seu corpo.
O vilarejo mudou. A rotina mudou. Um clima sombrio tomou conta do lugar.
Até que, numa noite, um grito terrível chamou a atenção de todos os aldeões.
Na porta dos Harris, a família de Daisy, alguém havia misteriosamente pintado um corvo. Todos se perguntaram nos dias que se seguiram quem poderia ter feito algo do tipo. Os rumores apontavam que Hazel só poderia estar viva e que a própria teria feito o desenho. Uma pergunta, porém, permeou no ar: como ela teria desenhado o corvo sem ser vista? Boatos de magia satânica começaram a se espalhar e que até mesmo os próprios Harris estariam envolvidos. Que era uma dívida a ser paga. Os mais ousados até cogitaram que, se Hazel estava se vingando, era justo. Que não havia nada de mais.
Dias mais tarde, mais um grito ecoou pelo vilarejo, e todos viram que o mesmo desenho estava gravado na porta dos Smith, assim como na casa da família Hawkings. Novos boatos logo se espalharam: as imagens haviam aparecido como se tivessem sido feitas por uma mão invisível.
Mais tarde, em uma noite de lua cheia, o vilarejo foi assombrado por um acontecimento bizarro: todas as três famílias de Daisy, Lucy e Willow desapareceram completamente sem deixar rastro algum e nunca mais foram vistas.
Dizem que, a partir desse dia, nascia uma das lendas mais macabras e famosas do vilarejo. Com o passar dos séculos, enquanto o vilarejo se transformava em uma cidade, a história passou a ser contada de geração em geração como “A Lenda Da Garota Sem Rosto”. Aquela que vagueia pelas ruas em noites de lua cheia à caça de pecadores ー pessoas que cometeram atos terríveis ー e os conduz para a floresta, de onde nunca mais retornam.
A jovem fechou o livro de lendas de Fallwood e o devolveu à estante da biblioteca. Ela se dirigiu até a saída e desceu as escadas enquanto olhava três fotos no celular: duas garotas e um garoto.
Ela sorriu lentamente.
Estava na hora de se vingar dos descendentes daqueles que feriram sua ancestral.