Michel morava no centro da cidade, em uma zona tranquila de classe média. Era um homem maduro, pai de família e um marido não muito atencioso. Embora trabalhasse o dia inteiro, gostava de dar suas voltas noturnas no parque próximo à sua casa sempre que chegava do escritório. Um hábito que cultivava para que pudesse desopilar a mente e depois curtir sua família com mais tranquilidade, mesmo que por pouco tempo, pois sua filha Carlinha tinha apenas sete anos e dormia cedo. Sua esposa, Daniela, trabalhava de home office, portanto, acabava sendo “dona de casa”, embora não gostasse muito desta tarefa que acabou lhe sendo destinada. Ela cuidava mais das rotinas do lar e da Carlinha.
Era anoitecer de uma quinta-feira de setembro quando Michel chegou em casa. O clima estava agradável e ele não via a hora de começar sua caminhada noturna. Logo, o marido cumprimentou sua família rapidamente, que estava na sala, conversando. Beijou sua esposa e disse que voltaria logo. Carlinha foi atrás do pai e lhe deu um abraço, que foi retribuído com um sorriso e um beijo na testa. O homem saiu de casa, andou poucos metros e chegou a seu carro, que estava estacionado na rua, próximo dali. Desativou o alarme, entrou e dirigiu-se até o parque, já imaginando o deleitável frescor que encontraria durante sua caminhada.
Chegando ao parque, Michel estacionou o carro, ativou o alarme e começou a caminhar. De forma calma, pois o seu objetivo era mais espairecer do que propriamente exercitar-se. Notou que o parque estava muito vazio naquele momento, mesmo que a noite estivesse agradável. Porém, seguiu firme em seu propósito, Michel era um homem determinado.
Mais ou menos uma hora se passou e o homem já fazia o seu percurso de volta. O parque estava escuro e completamente vazio. Michel sentia-se mais descontraído e energizado. Caminhava com um leve sorriso no rosto e em um ritmo bem tranquilo. Esta sensação de relaxamento fora bruscamente interrompida por um sonoro grasnar de corvo. Michel deu um pulo para trás, olhou para o lado e viu um corvo pousado em um galho. O animal era maior do que o normal, tinha as penas tão escuras que podia se ver o azul do céu noturno refletindo nelas. Em um instante, talvez também movido pelo susto, a ave mordeu violentamente a mão de Michel, que soltou um berro que ecoou por todo o parque. O corvo saiu voando para longe. Michel, então, acelerou o seu passo em direção ao carro, a fim de chegar o quanto antes a um pronto-socorro. O homem começou a sentir seu ritmo cardíaco acelerar muito rapidamente, parecia que o seu coração iria saltar pela boca. Lá se foi toda a serenidade conquistada na caminhada.
Michel estava há uns 20 metros do carro, quando não aguentou e caiu no chão. Em um estado de confusão mental, ele começou a sentir uma coceira insuportável se espalhando pelo corpo. Se coçava tanto que chegava a rasgar suas roupas e arranhar sua carne. Nisto, sentiu seu peito esquentar, o calor se espalhou como se fosse um veneno correndo em suas veias. O homem se ajoelhou, todo rasgado, dilacerado pelas suas próprias unhas, encharcado de suor e lama, abriu os braços e começou a gritar até que caiu duro.
Era amanhecer de sexta-feira, quando Michel começava lentamente a abrir os olhos. Levantou-se, olhou para os lados e ficou ali, parado durante uns cinco segundos, com olhar determinado, característico da sua pessoa. Mas desta vez era diferente. O pai de família parecia ser guiado por puro instinto, em sua mente estava estabelecida a tarefa de chegar em casa e ver sua família. Mas, não era saudades que o homem sentia, era fome, e ele sabia que teria o que comer lá.
Chegando ao carro, ele desativou o alarme e, antes de adentrá-lo, olhou o seu reflexo no vidro por meio segundo. Michel não era mais Michel, era outra coisa. E mesmo assim, a visão do seu próprio reflexo não lhe surtiu nenhum efeito negativo, nenhuma surpresa ou desespero, nada. Ele simplesmente seguia seu instinto, como se fosse uma máquina programada para fazer tal tarefa e nada mais. Entrando no carro, ele partiu em direção à sua casa.
Após dirigir em altíssima velocidade, porém, de forma controlada a ponto de não se envolver em nenhum acidente, o homem estacionou o carro na rua, a poucos metros de sua casa, no lugar costumeiro. Desceu, não ativou o alarme e começou a caminhar lentamente em direção à porta de entrada.
Daniela, naquelas alturas, já estava muito preocupada com o sumiço do marido. Na noite anterior acabara dormindo cedo, pois tomara remédio controlado, ela sofria de ansiedade. Quando acordou e se deu conta da ausência de Michel, Daniela pensou em ir à polícia, mas resolveu não ir para poupar sua filha do ocorrido, a criança teria um dia importante na escola com um trabalho em grupo. A mulher respirou fundo, acordou Carlinha, tomaram café rapidamente e esperaram juntas o ônibus escolar da filha chegar, como faziam diariamente.
Logo depois de Carlinha partir, Daniela abriu a porta da frente e acabou dando de cara com Michel. Ou, com o que Michel havia se transformado. Ela deu um berro de pavor, seus olhos se arregalaram e, então, desmaiou na frente da porta. Michel a levantou do chão, carregou-a para o sofá da sala, voltou e fechou a porta da frente da casa.
Era entardecer desta sexta-feira quando chegou o ônibus da Carlinha. A menina desceu na frente de casa, olhou em direção ao pequeno jardim que havia antes da porta de entrada e ficou ali, em estado de choque, sem conseguir mover um músculo, apenas seus olhos iam aumentando cada vez mais, com o foco fixo em seu pai.
Carlinha sabia que era seu pai, os filhos sempre sabem, embora Michel estivesse totalmente transformado. O que ela olhava fixamente não parecia mais ser humano, e sim, uma criatura bestial. A tal criatura estava lá, em pé, devolvendo o olhar fixo à criança, no entanto, ao invés da expressão de pavor, apresentava uma expressão determinada, olhar preciso e destemido como o de um lobo que encurrala a sua presa instantes antes de atacá-la. Michel ainda usava suas roupas, mesmo que esfarrapadas e lamacentas. Tinha uma aparência de ave, uma ave monstruosa, um homem-pássaro: grandes olhos amarelos, penas compridas, pretas e molhadas que balançavam levemente com o vento, um grande bico acinzentado que começava no meio da testa e ia até o começo do peito. Um bico capaz de engolir uma cabeça inteira.
Durante este breve momento em que pai e filha ficaram ali se olhando estaticamente, abre-se vagarosamente a porta da frente da casa.
– Carlinha – ouve-se a voz de Daniela chamando sua filha. A voz era lenta, como a voz de uma moribunda, entretanto, Carlinha não conseguia olhar para a mãe, estava fixada olhando para a bizarra criatura em que se transformou seu pai.
– Entre em casa – ouve-se de novo a voz dificultosa de Daniela. Nisto, Carlinha vira o rosto e olha para sua mãe. Ela está segurando a porta entreaberta, apenas com sua cabeça a mostra, na penumbra.
– Seu pai… – fala Daniela mais uma vez, abrindo mais a porta. Então, Carlinha consegue vê-la: sua mãe estava ali, apoiada na porta, quase sem forças para se manter em pé. Além disso, Daniela estava sem os seus olhos. Sim, Daniela estava sem seus dois globos oculares, com enormes buracos no lugar, revelando veias penduradas, sangue escorrendo até o seu pescoço, músculos internos e uma parte do crânio.
– …está com fome!