GARGANTA DO DIABO

Três amigos que irão se separar em breve têm que fazer algo digno de se lembrar. Um amor platônico será revelado enquanto algo sinistro espreita nas sombras?

I

Era o fim do ano letivo no escaldante verão de 1994. Faltavam apenas duas semanas para o término das aulas e todos, finalmente, estariam livres para escolher os seus incríveis destinos nas férias ou, o mais provável, simplesmente não fazer nada. Dener, Lucas e Isabela eram grandes amigos. Formaram uma amizade forte e duradoura desde que os gêmeos Lucas e Isabela se mudaram para o bairro há dois anos. O pai dos gêmeos estava prestes a ser promovido e transferido para a matriz da empresa na capital, então, logo eles estariam separados, seguindo suas vidas em cidades diferentes. Além disso, o mais certo era que perderiam o contato para sempre. Era preciso pensar em algo intenso para fazer e que seria lembrado depois. Anos de boas notas, bom comportamento e pequenos vacilos que poderiam ser contados nos dedos de apenas uma mão deram aos três uma imensa vontade de transgredir as regras de suas casas, que até então eram as suas próprias sem maiores objeções.

Dener era um garoto sem grandes amigos e que falava pouco. Todos de sua turma em contrapartida eram agitados demais, encrenqueiros e tinham gostos diferentes dos seus. Quando não estava ajudando seu pai na pequena lavoura de milho atrás de sua casa, estava jogando sozinho algum jogo de cartas colecionáveis ou lendo algum livro-jogo que sua tia trazia de Porto Alegre. Mas não era porque tinha certos hábitos nerd e não curtia as bobagens dos outros garotos que não fazia das suas. Volta e meia, roubava um cigarro de seu pai e ia curtir à beira do riacho no fim do bairro.

No início de 1992, chegaram à Escola Estadual Roberto Ferrari os gêmeos Lucas e Isabela. Desde o início, viraram atração no novo colégio. Bonitos, inteligentes e bem vestidos, acabaram por chamar mais atenção do que gostariam, fazendo-os sentirem como se fossem uma atração de circo. A repulsa pelas fofocas e pelos papos pueris e fúteis os fez se isolar dos demais colegas, que julgavam entre si sem dó. Tal repulsa comum culminou inevitavelmente em uma longa conversa debochada com o garoto esquisito da turma, Dener. Desde então, ficaram cada vez mais próximos. Dener lhes mostrava o que o bairro podia oferecer além das margens da cidade, e os gêmeos podiam lhe proporcionar algumas horas de videogame, livros diferentes, piscina e outras regalias e novidades que Dener não tinha em sua casa simples. Por exemplo, o disco novo, “Dookie”, do Green Day, que embalou várias tardes no repeat.

Na quinta-feira, entre conversas e trocas de bilhetes nas aulas, Lucas, o mais extrovertido dos três, estava inquieto, maquinando o que eles poderiam fazer para marcar o fim dessa etapa em suas vidas e o início de uma nova, longe da sua cidade e dos amigos com quem cresceram juntos. Roubar o carro do pai e ir para o lago no topo do Morro dos Pinos? Arriscado demais para Isabela. Ela não colocaria a confiança de seu pai à prova desse jeito, ainda mais porque estava tentando há meses convencê-lo a lhe dar uma viagem para os Estados Unidos, logo ao final do segundo grau no ano seguinte. Quem sabe então imprimir identidades falsas com o amigo do primo do cara do terceiro ano, tentar entrar em uma festa no centro da cidade e tomar um porre? Dener era levemente cagão e certinho demais para infringir a lei na cara dura assim. Já no último período do dia, na penúltima aula de educação física do ano e muitas ideias idiotas depois, estavam os três sentados na arquibancada da quadra de esportes, esperando a sirene para poder ir para casa. Isabela, a mais improvável do grupo, deu a ideia final que todos aceitaram. Nem boba nem ousada demais.

No dia seguinte, eles iriam sair à noite quando seus pais já estivessem dormindo ou não estivessem mais prestando atenção neles, pegariam suas bicicletas e rumariam para a Garganta do Diabo. Uma antiga ponte cheia de lendas e mistérios que cruza um enorme penhasco, subindo a serra nos limites da cidade. Os olhos verdes de Dener se encheram de brilho e um enorme sorriso tomou conta do rosto de Lucas. Essa foi a ideia que tomou o coração dos três amigos, que riam cautelosamente enquanto cochichavam, longe dos ouvidos do professor e dos demais colegas.

Caminhando para casa, após o término das aulas do dia, até onde os caminhos dos amigos convergiam, eles foram planejando:

— E aí como vai ser? Que horas vamos sair? — Disse Dener

— Hmmm, não sei. Acho que lá pelas dez horas nossos pais já foram deitar. Né, Lucas?

— Sim. Eles andam bem cansados ultimamente. Acho que se deixarmos as bicicletas do lado de fora hoje no final da tarde, faremos menos barulho na hora de sair. E tu? — Lucas sinaliza para Dener.

— Pois é. Minha bicicleta fica dentro do galpão e a porta dele faz uma barulheira do caralho. Teria que deixar do lado de fora também. Mas meu pai vive entrando e saindo do galpão durante o dia inteiro. Tenho que pensar.

— E se tu aproveitar para tirar ela do galpão enquanto teu pai toma banho ou algo do tipo? — Pergunta Isabela.

— É. Acho que pode ser isso mesmo. Normalmente ele termina o serviço na roça, arruma as coisas no galpão e vai tomar banho enquanto minha mãe prepara o jantar. Se os dois estiverem ocupados, acho que consigo tirar a bicicleta sem levantar nenhuma suspeita.

Eles continuaram sua caminhada de volta para casa. Depois de decidirem mais alguns detalhes, ficou acordado que se encontrariam na praça no final da rua de Dener e de lá partiriam juntos em direção à ponte amaldiçoada. O plano geral estava arquitetado; um misto de ansiedade, tensão e felicidade arrebatou o grupo que conversava eufórico. Chegando ao fim do caminho conjunto, se despediram em uma esquina. Lucas e Isabela continuaram para a esquerda, prosseguindo com a conversa sobre os detalhes de seu plano particular. Dener foi para a direita. Os três amigos, enfim, tinham a certeza de que criariam uma ótima lembrança de sua amizade, mas Dener, ao mesmo tempo que estava feliz, tinha algo de melancólico em seu peito. Algo que o corroía por dentro de forma lenta e dolorosa sem que ao menos se desse conta plenamente.

Dener entrou em casa, deu um beijo em sua mãe e perguntou sobre seu pai. Ela prontamente apontou para a janela da cozinha que dava para os fundos da casa, onde, a apenas alguns metros depois, já se iniciavam mais de uma dezena de carreiras de milho, preenchendo cerca de um hectare de terra. Neste momento, Dener fez uma rápida observação e enxergou bem ao fundo do terreno seu pai carpindo matos dos canteiros, começando do fundo para frente, da esquerda para a direita, sempre igual, típico do seu temperamento metódico. Matos estes que já se apresentavam mais altos que o joelho, prejudicando o desenvolvimento da plantação. Dener sabia que o trabalho deveria ser feito e que tinha o compromisso de ajudar seu pai, mas naquele momento realizar a noite memorável com seus amigos era uma prioridade. Ele então pensou em uma saída promissora para que tudo que havia combinado com Lucas e Isabela saísse perfeitamente. Para sua mãe, ele alegaria estar um pouco indisposto e com dor no corpo; assim, poderia ficar no quarto durante a tarde, não ajudaria seu pai nesse dia e a limpeza do terreno atrasaria para o dia seguinte, o que certamente deixaria seu velho cansado na noite da fuga. E assim o fez. Sua mãe o tocou na cabeça e verificou que ele estava levemente quente, sem se atentar de que era justamente o dia da educação física no colégio. Sem refletir muito, sua mãe, que era sempre tão amorosa e cuidadosa, permitiu que ele se abstivesse do trabalho da roça no dia. Dener agradeceu e se recolheu.

Fechou a porta, jogou a mochila em um canto por cima de seus livros e revistas, deitou-se na cama, respirou fundo e então soltou todo o ar de tensão que aprisionava dentro de si. Olhando para o teto e escutando o tic-tac do velho relógio despertador em seu criado-mudo, Dener percebeu que aquela pequena fagulha negra crescia a cada segundo que passava. Ter de se despedir de seu melhor amigo e voltar para aquela puída solidão de dois anos atrás seria triste demais, mas a ideia de dar adeus a Isabela, isso sim, espremia seu coração e tornava-se insuportável.

Ele então lembrou do dia em que os gêmeos entraram na sala de aula. De início, não deu a mínima para Lucas, nem ao menos percebeu a desconcertante semelhança entre os dois novatos. Da primeira coluna, no lado direito da sala, sentado na terceira fila de carteiras, Dener perdeu uma batida em seu coração e sentiu o sangue subir do seu peito para o pescoço quando viu Isabela pela primeira vez. Seus longos cabelos castanhos claros, extremamente lisos e penteados, o rosto levemente arredondado, bochechas rosadas e sardinhas bem aparentes. Ela reluzia à luz que entrava das janelas no lado oposto da sala. Sua providencial e inesperada amizade com Isabela e seu irmão fez transformar aquele sentimento primal bizarro em admiração intensa por sua personalidade pacífica e inteligência sagaz. Somado a tudo isso, criou-se com raízes profundas um fervoroso amor platônico por sua melhor amiga. Na cama, Dener virou-se e olhou a foto dele e seus amigos que estava escorada à frente de sua coleção de latinhas, disposta na prateleira pendurada sobre a janela na parede de madeira de seu quarto. Ele soube nesse momento que não poderia deixá-la partir sem que ao menos soubesse o que sentia. Mesmo que ela não ligasse, que o colocasse imediatamente ao frio deserto da friendzone ou que isso acabasse com qualquer possibilidade de manter contato após sua partida. Pensou e repensou várias vezes enquanto fitava a foto sem parar. Dener tinha que livrar-se daquele lobo negro dentro de si. A ida à Garganta do Diabo seria o momento, não havia outra saída, decidiu.

II

No dia seguinte, duas provas finais: matemática e física. O que poderia ser mais difícil? Nem isso pôde superar a inquietante ansiedade pela promessa da saída sorrateira que viria na noite daquela sexta-feira de tempo bom e céu anil. A noite estaria linda e clara, com a lua cheia pairando sobre a ponte e os três amigos. Tudo esquematizado, após o término das aulas eles voltam para suas casas, se despedem na mesma esquina de sempre e começam a colocar em prática seus planos de fuga. Lucas e Isabela chegam em casa, almoçam e passam a tarde lendo e assistindo TV em seus quartos.

Já Dener tem de ajudar o seu pai com as carreiras de milho. Logo após descansar um pouco depois do almoço, ele vai até o galpão e observa todas as coisas minuciosamente: como estão dispostas latas de tinta velhas, ferramentas penduradas ou escoradas, baldes, duas rodas velhas da Tobata, restos de madeira e pisos laminados, três cadeiras quebradas e as duas bicicletas da família. Colocou mais de lado as latas de tinta, moveu algumas ferramentas e empilhou as cadeiras escoradas na parede mais ao fundo do galpão, tudo para facilitar e evitar qualquer tropeço na hora de tirar a bicicleta no final do dia. Enfim, pegou uma das enxadas e foi trabalhar.

Pouco tempo depois, seu pai veio somar-se ao trabalho de limpeza das carreiras. Graças ao seu plano, o trabalho duro se estendeu debaixo do sol escaldante até as 18h, o que esgotou as forças do seu velho. No final do dia, pai e filho conversaram um pouco na varanda dos fundos da casa enquanto tomavam água. Seu velho, apesar de carrancudo e reclamão, sempre foi um bom amigo e mestre da vida para Dener. Depois desta pequena pausa, pediu para que Dener guardasse as ferramentas e fechasse o galpão; só então ele se recolheu para tirar a terra arenosa do corpo num banho quente e enfim descansar os pés velhos sobre a banqueta estofada enquanto assistia TV e esperava o jantar. Dener aguardou até que seu velho entrasse no banheiro, espiou rapidamente pela janela para conferir se sua mãe estava entretida com o início dos preparativos para o jantar. Confirmado, encaminhou-se ao galpão. Guardou as ferramentas, tirou a bicicleta e a escorou atrás da estrutura de madeira, longe das vistas de seus pais. Trancou o cadeado e voltou para casa, fingindo normalidade.

Na casa dos gêmeos, o jantar foi tranquilo e não levantou nenhuma suspeita. Toda sexta-feira a família pede uma pizza para comemorar, uma recompensa por todo trabalho e esforço em suas tarefas semanais. Um pequeno ritual apreciado tanto por Lucas e Isabela quanto por seus pais. Pequenas conversas à mesa e um cuidado extra para não revelar o nervosismo que ambos sentiam com a sorrateira confraternização que viria não muito tempo depois na Garganta do Diabo. Isabela, com medo de entregar algo, acabou por ficar mais calada, o que chamou a atenção de sua mãe.

— Está tudo bem, Isa? — perguntou.

Isabela, por sua vez, sentiu o estômago revirar e quase engasgou.

— A prova de física hoje estava um pouco difícil, mas acho que foi tudo bem — disfarçou.

O jantar chegou ao fim, Lucas recolheu os pratos e os levou para a cozinha. Enquanto os gêmeos lavavam a louça, os pais deram um beijo em cada filho, confortaram Isabela de sua preocupação falsa e foram dormir sem desconfiar de nada. Entre esfregar, enxaguar e secar, eles conversavam baixo sem chamar atenção.

— Tirou as bicicletas hoje mais cedo, Lu? — Perguntou Isabela.

— Sim, estão do lado da casa. Estava pensando, acho que podemos roubar um dos vinhos na garagem para levar. O que acha?

— Perfeito! Tem uma caixa aberta e o pai nem vai notar que terá um faltando.

— É. Espero que eles durmam logo pra que possamos chegar na hora marcada.  Não vai ser bom Dener ficar vacilando na praça, sozinho.

— Vamos terminar aqui, cada um vai para o seu quarto e esperamos até as 15 para as 10. Se já estiverem dormindo, juntamos as coisas… assim acho que conseguiremos sair às 10 em ponto.

— Certo. —  Confirmou Lucas.

Eram por volta de 20 para as 10. Dener já tinha colocado em sua mochila velha um maço de cigarros que havia roubado da despensa um dia antes, pegou também quatro long necks de cerveja que deixou escondidas gelando no freezer horizontal um pouco antes do jantar, uma lanterna e o livro-jogo que mais gostava para dar de lembrança à Isabela. Nele, horas antes, escrevera na antepenúltima página uma pequena declaração onde revelava todo o sentimento que guardava por ela, caso não conseguisse externar seus sentimentos cara a cara naquela noite. Tarefa hercúlea devido à sua personalidade tímida.

Tudo estava pronto. Dener saiu pelo corredor colocando pé após pé com todo o cuidado para minimizar os rangidos do assoalho de madeira, parou em frente à porta do quarto de seus pais e esperou. Esperou, quase sem respirar, ele esperou ainda mais um pouco. E então, um ronco grave que transpassa a porta com um crucifixo é o sinal de que o caminho estava livre. Ele olhou para o rosto triste e maltratado da imagem de Jesus e pediu perdão. Nesse momento, um arrepio subiu sua espinha. Era um sinal que não seria interpretado naquele instante. Levemente mais tranquilo, voltou para o seu quarto, pegou a mochila e saiu pela janela para evitar o rangido da porta de ferro da cozinha. Pegou sua bicicleta e tomou a direita rumo à praça no final da rua, cerca de 500 metros adiante.

Dener chegou à praça vazia, olhou bem para os lados, verificou se havia mais alguém por perto e só depois se sentou no banco abaixo da luz amarela do poste. Não muito tempo depois, ele avistou ao longe duas figuras de bicicleta vindo em direção à praça. Serrando os olhos para ver mais longe, identificou os gêmeos, diminuindo seu nervosismo e relaxando por um tempo. Eles se cumprimentaram com longos sorrisos em seus rostos e não perderam tempo para pedalar em direção à Garganta do Diabo. Conversavam e riam de sua pequena aventura particular enquanto pedalavam pelas ruas do bairro até saírem na pequena estrada de chão que leva à ponte da velha linha de trem abandonada. Foram cerca de 20 minutos de pedalada por ruas e estradas praticamente desertas, principalmente no último trecho, passando por uma estreita estradinha de chão batido, apenas escutando o som sinistro da noite na floresta e o roçar dos pneus na terra. Depois de uma cansativa subida de um quilômetro, eles avistaram a silhueta tenebrosa da ponte de ferro por entre as árvores. Lucas, o mais empolgado dos três e também o mais atlético, chegou primeiro, enquanto Dener vinha com Isabela um pouco mais atrás. A escuridão úmida da estrada envolta de mata fechada deu lugar ao ar fresco e à claridade que vinha da enorme lua prateada naquela noite.

Isabela chegou exausta, largou a bicicleta na entrada da enorme estrutura de ferro enferrujada e sentiu um nervosismo incomum. Toda certinha, ela nunca havia feito algo do tipo: sair de casa às escondidas para ir a um lugar completamente desconhecido e inóspito. O local a oprimia por seu tenebrismo avassalador. O rastejar entre as folhagens do entorno, ruídos de animais invisíveis na escuridão, a sinistra sensação de estar sendo horrivelmente observada, cada sombra projetada no chão parecendo ganhar vida própria, dançando ao ritmo de uma melodia sobrenatural. Tudo isso afetava sua doce mente como agulhas cutucando sua pele.

Sem cerimônias, Isabela pegou a mochila e tirou a garrafa de vinho que trouxeram de casa, abriu-a rapidamente e deu um gole vultoso para matar a sede e seu nervosismo. Ao seu lado estava Dener, com olhar tenso, observando a vastidão da paisagem que se estendia até as luzes da cidade vizinha. O vento sussurrava por entre as enormes vigas de metal, evocando suspiros inumanos que ecoavam como lamentos distantes, criando uma complexa sinfonia diabolicamente melancólica que parecia afetar ainda mais os pensamentos de Dener do que os de Isabela. O chiar do ferro envelhecido, a sombra abstrata projetada pela luz da lua na ponte e o desejo de se declarar à Isabela sufocavam-no ao mesmo tempo que aceleravam sua respiração.

Todos com suas bebidas em mãos e cigarros acesos, brindaram para tornar o cenário mais alegre. Afinal, eles queriam muito esse momento. Enquanto o vinho fluía direto do gargalo, os corpos e, principalmente, as mentes iam relaxando. As risadas começavam aos poucos a se misturar com o sibilar do vento e o farfalhar das folhas das árvores. Lucas, com sua animação contagiante, ligou um pequeno toca-fitas com uma fita que havia gravado especialmente para aquele momento. Metallica, Offspring e Guns N’ Roses ecoavam pelo vale. Animado, começou a relembrar as inúmeras travessuras da escola, arrancando risos sinceros dos amigos. Isabela, ainda inquieta com o ambiente, cedeu às histórias hilárias e, entre goles de vinho misturados à cerveja morna, compartilhou detalhes de suas próprias travessuras juvenis e romances com garotos que nunca combinariam com ela, chateando Dener, que a amava em silêncio. Para quebrar seu próprio clima, Dener, que era quase sempre muito contido, ensaiou até alguns passos de uma dança boba sobre o piso de madeira da ponte, balançando os cabos afrouxados pelo tempo daquela estrutura assombrosamente grande. Os círculos de fumaça e o tilintar das garrafas coroavam o sentimento de amizade que esperavam. 

Meia carteira de cigarros e quase todas as bebidas consumidas depois, Lucas explorava o local e já estava tão longe que mal podiam vê-lo jogando sua garrafa de cerveja no penhasco. Dener segurava em sua mão o livro que trouxe para dar de presente à Isabela. Sentindo o peso da confissão, ele entregou o livro a Isabela sem revelar seus sentimentos verdadeiros. Seus olhos não puderam encontrar os dela, e as palavras ficaram sepultadas na garganta. Isabela, que já estava levemente alta, beijou o canto de sua boca, errando-lhe a bochecha. O rosto dela se ruborizou, pois ficou extremamente sem graça. Quando Dener se deu conta do que aconteceu, só pôde ver seus longos cabelos lisos enquanto ela saia rapidamente em direção a Lucas no outro lado da ponte. O livro, agora nas mãos de Isabela, parecia carregar não apenas palavras impressas, mas também os segredos não ditos e os sentimentos não revelados que pesavam sobre o jovem e desajeitado coração de Dener. Estava lá, presa naquelas páginas fechadas, a sua própria alma.

Paralisado por um segundo, Dener viu a oportunidade que nunca tivera escorrer entre seus dedos. Virou-se, olhou para a garrafa de vinho com tristeza e bebeu o último gole que havia. Agarrado à viga de ferro da ponte, ligeiramente tonto, deixou a garrafa escorregar das mãos, assim como fizera com o beijo de Isabela. Sem quebrar, a garrafa caiu no piso de madeira da ponte e rolou para fora.

Dener a observou e acabou olhando para o fundo do abismo. Foi nesse exato momento que uma visão aterradora tomou sua mente. Seu coração gelou e suas pernas fraquejaram enquanto via a figura sinistra emergindo das profundezas da escuridão abaixo de seus pés. A criatura horrenda tomava forma e crescia, assim como seu som hediondo ficava cada vez mais alto. Cinco bocas desproporcionalmente cheias de dentes rodeavam a massa escura que se retorcia. Duas das bocas recitavam sem parar um verso em uma língua esquecida, enquanto as outras três emitiam um som inquietante, semelhante a uma expiração asmática ininterrupta que se tornava ensurdecedora aos ouvidos de Dener. Entre as bocas, olhos com duas pupilas rodeavam e dançavam sobre a massa negra e demoníaca. As pupilas dilatadas que tremiam nos enormes globos brancos sugaram toda a luz daquela noite clara, transformando-a no breu mais escuro que, por sua vez, tomou a alma do garoto.

O tempo pareceu congelar enquanto Dener era tomado pela visão horrenda da criatura demoníaca. O garoto havia perdido toda e qualquer referência de tempo e espaço, pois ali estava no próprio inferno, no círculo mais profano e herético de Dante. Formas retorcidas e gritos de pavor. Almas perdidas se mesclavam ao cenário, à entidade e a ele próprio, como se o hediondo objetivo fosse se tornar um. O abismo gigantesco que antes estava sob seus pés na Garganta do Diabo, agora era a totalidade de sua mente perturbada. Os olhos estáticos de Dener, sem poderem se fechar, observaram a outrora luz prateada da lua se tornar vermelha como sangue enquanto aqueles olhos e bocas cheias de milhares de dentes se aproximavam. Sua pele, que antes sentia o soprar da brisa fresca da noite, agora fervia com baforadas intermitentes de um ar sulfuroso.

Os dedos de Dener se arquearam, o corpo se enrijeceu por inteiro, os olhos viraram para cima a ponto de não apontarem sequer uma parte de sua íris verde esmeralda. E a boca, aberta ao máximo, emitia o mesmo som ignominioso da criatura diabólica que tomou sua mente. Lucas e Isabela, que voltavam para aquele lado da ponte, viram apenas Dener naquela cena de pavor inominável.

Isabela gritou de horror enquanto observava a pose retorcida de seu amigo, denunciando uma agonia interior imensa que não deveria pertencer a qualquer humano nesta terra. Lucas, por sua vez, agarrou Isabela pela mão com tanta força que poderia tê-la machucado. Cerrou seus dentes e olhos com uma expressão de medo e incomodação, quase sentindo a dor física de seu amigo, e assim ficou por alguns segundos. Os dois paralisados por um misto de pânico e impotência, cativos enquanto viam seu amigo ser tomado por algo negro vindo do início dos tempos. O ruído surreal cessou, os olhos de Dener se fecharam, o corpo amoleceu e ele caiu desfalecido no chão.

O silêncio da noite tomou conta do local, até que os gêmeos se libertaram da dormência e correram para socorrer seu amigo. Isabela colocou a cabeça de Dener sobre seu colo enquanto tentava reanimá-lo. Dener acordou assustado, levantando rapidamente sem saber o que tinha acontecido. Lucas, por sorte, havia trazido uma garrafa de água em sua mochila e deu para Isabela, que tentou fazer Dener beber algo. Ele estava desnorteado, olhando para os lados como se estivesse procurando algo que nem sequer sabia o que era.

— Minha Nossa Senhora, cara! Que diabos foi isso? – Lucas falou exaltado.

— O quê? Eu não sei! Tomei um gole de vinho e depois não me lembro de nada. Por que eu estava deitado aqui? Eu apaguei?

— Apagou? Tu tá louco? Te deu um treco, estava todo torto fazendo um barulho bizarro. — Respondeu Lucas.

— Tu está bem, Dener? — Perguntou Isabela, preocupada.

— Err.. acho que sim. Sei lá. Acho que estou bem agora.

— Bom, acho que a noite acaba aqui. Tudo isso foi muito estranho. Né? — Fala Lucas, enquanto olha para Isabela.

— É. Acho melhor irmos embora, chega de emoções por hoje. Nós vamos contigo até tua casa, caso aconteça de novo. — Responde Isabela, olhando para Dener com carinho.

Os três amigos, perdidos em silêncio, separaram-se para recolher suas coisas. Montaram desajeitadamente em suas bicicletas e desceram até a cidade para descansar e eliminar da mente os últimos momentos aterrorizantes daquela noite. A lua, testemunha silenciosa, iluminava o caminho tortuoso de volta à civilização. O ar da noite, que há algumas horas era leve, agora carregava consigo um peso moribundo e sem vida, vítima de um susto destruidor. O cenário ao redor, que no primeiro momento parecia obscuro e sinistro, havia se tornado mágico e logo em seguida voltou a ter uma sombra aterrorizadora ainda pior, uma mancha que não podia ser facilmente apagada.

Isabela, pedalando ao lado de Lucas, olhava distante, revivendo a visão de Dener possuído a cada metro, enquanto Lucas, normalmente o mais efervescente, mantinha um semblante sombrio, apenas zelando por Dener que pedalava à sua frente. O garoto, desajeitado, magro e de olhos verdes, sentia um arrepio percorrer sua espinha enquanto descia até a cidade. Em seu ouvido, soava um murmurar sussurrante e ininteligível. Aquela bela noite, que esperava-se que formaria lembranças para uma vida inteira, realmente entregou o que prometia. Porém, não próximo do que Isabela, Lucas e Dener esperavam. Certamente, a visão fantasmagórica de Dener marcará a vida dos gêmeos para sempre. Já Dener ficou com o gosto amargo de perder a oportunidade de beijar Isabela e a desconfiança de que algo não estava normal consigo. E foi assim que deixaram para trás a Garganta do Diabo, esperando nunca mais voltar.

Sobre o autor: Pintor, Designer, Músico e Escritor. Um apreciador do tenebrismo do Barroco e as paisagens bucólicas do Realismo, mas na literatura e cinema prefere o Terror viceral. Tem um estilo direto e simples, gosta de explorar uma narrativa dinâmica em um contexto que chama de Horror Interiorano Retrô. Contando histórias em cenários de cidades pequenas em um passado recente atormentado por monstros, demônios e esquisitices. G.F. Rodrigues traz histórias para os apreciadores dos clássicos dos anos 70 e 80.

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Apresentado pelo enigmático Amadeus Cripta, guardião dos segredos mais sombrios escondido nas profundezas de uma antiga catacumba, "Ecos & Silêncio - Volume 1" é uma coleção imperdível de contos macabros que promete arrepiar até as almas mais corajosas. Neste volume você encontrará Vozes do Submundo, O Jugo da Escuridão, Safra Perfeita e Ventos Passados. Sente-se, relaxe e desfrute da escuridão.

Vozes do Submundo: Um conto cheio de aventura e criaturas sinistras, onde o irmão mais velho embarca numa jornada desesperada para salvar o mais novo.

O Jugo da Escuridão: Um jovem promissor, recém-promovido, é surpreendido pela violência à porta de sua casa. Durante treze dias, as coisas irão piorar expressivamente, mergulhando-o num abismo de desespero e medo.

Safra Perfeita: As coisas não vão bem na fazenda dos Maldonado. A filha do fazendeiro, Elisa, tem revelações terríveis e observará mudanças bizarras na fazenda. Será uma oportunidade ou uma maldição?

Ventos do Passado: A história de Celina. Uma mulher na meia idade, ávida por livros de romance. Desejosa por um amor idealizado, ela o recebe de onde menos espera.

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Ano: 2024

ISBN: 9786501106076

Páginas: 92

Papel: Polen 80g

Formato: 14x21cm

Acabamento: Brochura

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