I
Milena desperta com o agradável aroma do café da sua avó. Apesar da vontade de degustá-lo, permanece enrolada na cama, resmungando sobre a hora e todas as obrigações que a aguardam. Olha o relógio, dá um longo suspiro e finalmente decide levantar. Assim que ela desce o segundo lance de escada, rangendo a madeira, escuta sua avó perguntar da cozinha:
– Descafeinado?
– Sim, vó. – responde ainda sonolenta.
Sentando-se à mesa sozinha, Milena fica absorta em suas redes sociais. Sua avó tenta iniciar uma conversa, mas ela parece mais concentrada em responder mensagens de suas amigas no celular ou assistir a vídeos de humor discutível.
– Milena, estou falando contigo. Vais acabar ficando presa dentro desta caixa aí, vazia e sem coração.
– Não me incomoda vozinha. É assim que as pessoas se comunicam hoje em dia. – responde com indiferença.
– Tens plantão hoje ou volta mais cedo para assistir TV com a tua avó?
– Não tenho plantão, mas tenho um compromisso.
– Hoje é sexta-feira. À noite tem a final da Roda da Sorte. Se ficares para assistir comigo posso fazer um bolo de laranja com chá. – insiste.
– Desculpe, vozinha, hoje não. Tenho um encontro depois do trabalho. Por que não chama a tua amiga Bea, nunca mais se falaram? – pergunta ela, demonstrando um falso carinho pela sua avó.
– Nossos caminhos tomaram rumos diferentes. Hoje, ela se dedica a outras prioridades.
A avó recolhe a mesa do café da manhã em silêncio por um momento, antes de subir as escadas para o segundo andar da casa, onde se encontra seu ‘santuário’ pessoal. Seu quarto, um espaço sagrado, possui uma ampla varanda que se abre com vista para o mausoléu da família, localizado no cemitério gótico, além do bosque. Ali é o seu refúgio. Sentada em sua velha cadeira de balanço, a avó Agnes contempla serenamente a vista, murmurando palavras doces para seu falecido marido.
Quando Agnes está em busca de paz, costuma cantarolar uma antiga canção do seu tempo a fim de distrair a mente, apoiando-se sobre a bengala que pertenceu ao avô de Milena. Um objeto raro e muito valioso feito de sândalo vermelho esculpido em madeira maciça adornado com símbolos antigos.
Milena segue rumo ao quarto para se aprontar antes de sair. Do lado de fora, um ruído irrompe a tranquilidade daquela manhã. As buzinadas irritantemente frequentes indicam a impaciência de Janice, amiga de Milena que vinha buscá-la todos os dias para irem juntas à faculdade. Sua avó, visivelmente desconfortável, não nutria muita simpatia pelas amigas de sua neta.
– Vozinha, ao menos espere eu sair de casa para cantar estas músicas macabras, por favor. Ah! E nem precisa me esperar acordada. – despede-se de forma irônica.
Milena está cursando o penúltimo ano da faculdade de Farmácia e faz estágio à noite. A garota mora com sua avó Agnes há oito anos desde que sua mãe faleceu devido a múltiplas complicações causadas por uma doença rara, tendo que ser cremada devido ao risco de contágio iminente.
Sua relação com seu pai sempre foi rasa. Divorciado de sua mãe desde que Milena era uma criança, ele nunca demonstrou interesse em ser uma presença constante na vida da filha, e ela, por sua vez, não busca sua companhia de forma ativa. Essa falta de proximidade é evidente e mútua, refletindo uma desconexão emocional entre os dois.
Agnes, a avó de Milena, também não é alguém de convívio fácil. Após a morte de seu marido há 15 anos, a solidão nesta casa antiga e espaçosa moldaram seu temperamento, tornando-a uma pessoa difícil, desconfiada e egoísta. No entanto, ela tem se esforçado para criar um ambiente agradável para sua neta, especialmente após a perda trágica de sua própria filha.
Já passa da meia-noite. O céu está mergulhado na escuridão, sem a luz da lua para iluminar as ruas, tornando-as sombrias. O bairro onde Agnes e sua neta residem está situado nos subúrbios da cidade, em uma área tranquila e residencial. Poucos jovens escolhem fixar moradia ali, preferindo os locais mais movimentados. A vizinhança é marcada pela presença de extensas áreas de matas nativas, propiciando um ambiente sereno e natural. O local também abrange o Cemitério Bosque dos Anjos, antiga referência na região e considerado mal-assombrado por alguns residentes locais. As imponentes casas, em sua maioria construídas há mais de meio século, tiveram sua época áurea nos anos 70, quando o bairro era considerado uma região nobre. Há um carro parado próximo à casa de Milena. Ela está acompanhada do rapaz com quem tinha marcado um encontro naquela noite. Ele parecia agitado, os olhos constantemente voltados para o brilho de seu celular.
– Não se preocupe, sua esposa não vai ligar a esta hora. – disse ela, impaciente.
– Eu espero que não. Então… vamos para a sua casa? Você sabe que na minha não tem a menor chance. – sugere.
– Não tenho certeza. – hesitou Milena.
– Vamos lá… eu sei que você quer. Ou então vamos para aquele cemitério gótico do outro lado do bosque. Ao menos ali os mortos não irão se incomodar conosco.
– Você enlouqueceu? Aquele lugar é amaldiçoado.
– Ah, pára com isso… ninguém vai te puxar pra dentro da tumba. Além do mais não sei quando teremos outra oportunidade de nos encontrarmos.
– Ok, vamos para a minha casa, porém, você precisa seguir todas as minhas instruções. Se minha avó acordar e te ver, vai começar a me tratar como tratava seus filhos e o meu avô.
– Sua avó parece tão doce e gentil.
– Você não a conhece de verdade, nunca a viu irritada. Não queira vê-la assim.
O rapaz estacionou o carro a uma quadra de distância e eles entraram na casa descalços. Milena fechou a porta do seu quarto com cuidado. Ambos estavam levemente embriagados, após terem saído para comer pizza e beber espumante barato em uma espelunca nos arredores do centro da cidade. Ele se jogou na cama de maneira desajeitada, emitindo um estrondo alto. Milena encarou-o com os olhos arregalados e fez um gesto de silêncio, colocando o dedo indicador sobre os lábios. Logo ao lado ouve-se a porta do quarto da avó abrindo lentamente.
– Milena? Milena? Já chegaste? – pergunta Agnes com tom de preocupação, enquanto apoia-se com dificuldade sobre a bengala de seu falecido marido.
Prontamente, Milena sai do quarto puxando a porta até travar na madeira. Respira fundo e vai ao encontro de sua avó, antes que a mesma pudesse passar na frente do quarto. Fingindo ser uma pessoa prestativa ela pergunta:
– Está tudo bem com a senhora vozinha? Eu vou preparar um chá verde, gostaria de um também? – diz ela visivelmente nervosa, já conduzindo sua avó pelas escadas.
– Eu não sabia que já estavas em casa, não escutei nada. Devia estar muito cansada. Vou querer um chá de hibisco, minha querida.
Agnes aguardava o chá sentada junto à mesa da cozinha, enquanto a água fervia. Rapidamente, Milena vai até o quarto, pega alguns comprimidos de efeito tranquilizante que costuma manipular na farmácia em que trabalha, pede silêncio ao rapaz que estava escondido embaixo do edredom e, ao retornar, encontra sua avó cantando baixinho a antiga canção que lhe causa calafrios.
– “Dentro dele mora um anjo, que roubou meu coração”.
– Credo vó. Ninguém vai roubar teu coração. E esse anjo dessa tua música não parece uma pessoa muito boazinha.
– Tu e tua mãe são muito sensíveis. É uma antiga canção de ninar que eu e teu avô cantávamos para ela à noite, mas por alguma razão a deixava mais assustada.
– E então, como foi o programa Roda da Sorte? Saiu o prêmio do milhão?
– Querida, você sabe que eu não gosto de assistir programas de TV quando estou sozinha. Pratiquei minha leitura e fui deitar. Acordei em função de um ruído que deve ter vindo de dentro do teu quarto. – provoca Agnes.
Sua avó, conhecida pela natureza desconfiada e habilidade para julgar as pessoas, parecia ter seus motivos neste caso específico. Milena, em silêncio, levanta-se e serve o chá de hibisco, adicionando discretamente um pouco mais do “ingrediente secreto”. Agnes aceita duas xícaras sem suspeitar de nada, enquanto estavam envolvidas em uma conversa completamente desinteressante e claramente encenada. Quando Milena oferece a terceira xícara, Agnes recusa com um aceno de cabeça, indicando que estava satisfeita.
Passaram-se 40 minutos. Tempo suficiente para uma superdosagem de benzodiazepínico começar a fazer efeito, mesmo que diluído em duas xícaras de água quente. Milena acompanha sua avó pelos dois lances de escada. Agnes recorria à sua bengala apenas quando sentia alguma falta de equilíbrio. Nesse momento, estava apoiada a ela.
Ela deita-se na cama enquanto sua neta a observa da porta do quarto, como um abutre fita a sua presa moribunda, aguardando silenciosamente o desfecho inevitável.
– Boa noite vozinha, até amanhã. – diz ela aliviada, retornando para seu quarto.
Milena entra e fecha a porta com cuidado, esboçando um leve sorriso em seus lábios. Puxa o edredom para revelar seu encontro da noite, agarra-o com força e começa a beijá-lo. No entanto, o rapaz parece tenso e não corresponde com a mesma empolgação.
– Relaxa, ela caiu dura na cama. Uma idosa de 76 anos não poderia resistir a uma superdosagem daquelas.
– Olha, eu acredito em você. Porém estou com um péssimo pressentimento.
Milena evita entrar em detalhes e tenta tranquilizá-lo. Nervoso, o rapaz prontamente levanta-se para buscar o preservativo dentro do bolso da sua calça, pendurada no cabideiro ao lado, quando se depara com um vulto projetado pela luz do corredor embaixo da porta. Paralisado de pavor, tenta gesticular para Milena, quando escutam novamente a avó chamando.
– Milena? Está tarde! Estas falando neste maldito aparelho de novo? – pergunta Agnes com uma voz nitidamente entorpecida.
– Não vó, é a minha televisão que ficou ligada. Já vou desligá-la. Podes voltar para a cama. – responde atônita, sem entender como era possível sua avó ainda estar de pé.
A maçaneta da porta do quarto começa a girar. Neste momento, o rapaz tenta esconder-se atrás do cabideiro, puxando-o contra a parede. Antes que sua avó pudesse entrar, Milena levanta-se rapidamente e apanha uma seringa de dentro de um gaveteiro próximo à sua cama. Puxa o êmbolo e a deixa preparada para o disparo. Assim que a porta se abre, Milena toma a frente, avançando em direção à sua avó na tentativa de bloquear sua visão, mas já era tarde demais.
– Vó a senhora respeite a minha privacidade! Não posso mais tolerar este tipo de comportamento! – desabafa extremamente irritada.
– Tem um rapaz sem roupa escondido atrás da porta. O que ele está fazendo dentro da minha casa? – pergunta Agnes, surpreendendo sua neta, pondo em prática seu dom da desconfiança no mais alto nível. – Eu vou ligar para a polícia agora mesmo e você fique aqui comigo.
Um pânico iminente invadiu Milena naquele instante, fazendo seu coração acelerar. Seus pensamentos tornam-se confusos e turvos e uma sensação de sufocamento a envolve. A necessidade urgente de agir combinada com o medo avassalador do que estaria prestes a acontecer a deixa em um estado de desespero.
Então, Milena agarra a seringa do bolso de seu roupão e em um gesto rápido e totalmente impulsivo a aplica contra o peito de Agnes. Tratava-se de uma dose concentrada para um novo antipsicótico em teste, desenvolvido no laboratório onde trabalha.
Com uma agulha cravada em seu coração, a idosa dá alguns passos para trás. Suas pupilas dilatam em poucos segundos. Uma rigidez percorre seus músculos, fazendo com que seu corpo começasse a se contorcer involuntariamente, sendo lentamente petrificado. Milena, em um breve momento de lucidez, consegue arrancar a agulha do peito de sua avó, mas já era tarde demais. Agnes, imóvel e incapaz de se sustentar, desabou escada abaixo. Um silêncio perturbador toma conta do ambiente.
Não era essa a intenção que Milena tinha quando pegou aquela seringa e a guardou em seu bolso. Sua ideia era aplicar uma dose ínfima no local apropriado, agindo de forma responsável antes que a situação saísse completamente do controle. Obviamente não deveria ser aplicado diretamente no músculo cardíaco. Agora, a culpa a consumiria por um longo tempo, pesando em sua consciência como um fardo abominável.
II
Três meses se passaram após a trágica morte de Agnes e Milena finalmente volta para casa. Ela havia ficado no apartamento de sua amiga Janice durante o período de luto, buscando conforto e apoio até que pudesse se sentir bem o suficiente para retornar.
Como sua avó havia caído da escada, resultando em um pescoço quebrado, a autópsia não foi necessária. O rapaz que acompanhava Milena naquela fatídica noite fora interrogado alguns dias após o incidente, mas nenhum vestígio da seringa contendo a substância experimental foi encontrado. Nem mesmo ele chegou a ter conhecimento da existência do objeto em questão, permanecendo o segredo enterrado junto com a avó.
Sem parentes próximos para acolhê-la ou fazer-lhe companhia durante algumas noites, Milena se vê sem alternativas. Decidida, opta por permanecer na casa. Ao entrar, percebe que tudo está exatamente como havia deixado. Sentindo-se recuperada, praticamente livre de traumas, deita-se em sua cama e rapidamente adormece, sem a necessidade de remédios. Milena tivera sonhos reconfortantes com seu avô quando passara as noites no apartamento de Janice, mesmo tendo tido pouca convivência com ele. Essas visões tranquilizadoras ajudaram-na em sua recuperação, gostava de imaginar que as duas almas haviam finalmente se encontrado, aliviando temporariamente seu sentimento de culpa.
Faltando algumas horas para o sol nascer, Milena levanta-se apanhada de suor e com muita sede. Ela havia dormido muito mais do que o habitual. Sua rotina tinha mudado nos últimos dias devido à fase de readaptação. Ao terminar de descer o segundo lance de escada, encaminha-se para o corredor à direita em direção à cozinha para buscar um copo de água gelada. Ainda um pouco tonta, é surpreendida por uma voz tenebrosamente suave, quase como se fosse um suspiro vindo do além túmulo.
– Descafeinado?
A garota leva um grande susto, fica momentaneamente paralisada e controla-se para não gritar. Sente suas pernas pesadas mas consegue alcançar o interruptor do corredor. Ao acender a luz, não vê nada. Caminha devagar em direção à cozinha, na ponta dos pés, enquanto seus batimentos cardíacos aceleram. Chegando lá, aponta a lanterna do celular para a cadeira onde sua avó costumava sentar-se, antes de alcançar o interruptor da luz da cozinha atrás da geladeira. Mais uma vez, não viu nada além do vazio. Respirando aliviada, decidiu permanecer ali, sentada, aguardando o nascer do sol antes de sair para trabalhar, com a sensação de que algo estranho ainda pairava no ar.
– Você estava acostumada com a presença dela ali, era parte da sua rotina diária. Se não estiver sentindo-se bem, pode ficar mais uns dias no meu apartamento. – propõe sua amiga Janice, enquanto dirigia rumo à faculdade.
– Mas parecia tão real. É como se ela nunca tivesse deixado a casa.
– Se você quiser eu marco um encontro com o Padre Lucius. Ele vai poder te ajudar.
– Agradeço sua ajuda amiga, eu ando muito cansada realmente. Estes últimos meses de luto foram difíceis, porém, aquela casa me pertence agora, não vou baixar a minha cabeça por qualquer coisa.
Ao chegar em casa mais cedo naquele fim de tarde, Milena encontra-se apreensiva. Aquela voz sussurrando as mesmas palavras que sua avó costumava proferir todas as manhãs ainda ecoava em sua mente, causando-lhe ansiedade.
Ela decide verificar cada canto da casa, certificando-se de que estava sozinha. Passou o restante do dia arrastando móveis velhos, vasculhando o interior dos armários e guarda-roupas um a um. Nada que pudesse justificar sua inquietação foi encontrado. Aproveitou para se livrar de roupas, objetos e outros pertences de sua avó falecida, deixando dessa forma o ambiente revigorado.
Gradualmente, aquela sensação ruim começa a desaparecer, e ela conclui que talvez não passasse de fruto de sua própria imaginação devido à sua culpa direta pela morte de Agnes.
Anoitece e uma chuva forte começa a cair lá fora. O barulho das espessas gotas d’água estourando no telhado de zinco criam uma atmosfera tensa no ambiente. Determinada a não deixar o medo dominá-la, Milena decide se distrair, preparando um jantar leve e assistindo a um filme cômico na TV.
Quando a situação parecia estar voltando ao normal, uma forte trovoada ecoa pela sala seguida de um estouro, provavelmente do transformador da rede elétrica externa, provocando a queda da luz. Um silêncio desconcertante se instala no interior daquela casa grande e vazia. Milena levanta-se para procurar uma lanterna e lembra-se de que sua avó costumava usar uma para observar os ninhos de sabiás nos arbustos, sentada em sua cadeira de balanço na varanda do quarto.
Ela sobe as escadas vagarosamente, tateando o corrimão na escuridão. Sua visibilidade é mínima, indicando que o bairro inteiro está sem energia. Ao chegar, percebe que o quarto está fechado. Dá uma leve forçada na porta, que estava emperrada, derrubando a bengala de sua avó. A garota acha tudo muito estranho, pois lembrava nitidamente de ter guardado o objeto dentro do armário enquanto descartava os pertences de Agnes.
Ao adentrar no quarto de sua avó, Milena utiliza a fraca luz do seu aparelho celular para procurar a lanterna. Antes que pudesse encontrá-la, escuta um ranger de madeira áspero e contínuo proveniente da varanda. O som parecia estar vindo da persiana mal fechada, sacolejando em função da ventania que soprava do lado de fora. A garota puxa a persiana e aciona a trava. O ruído continua. Trêmula, Milena abre-a novamente, expondo a escuridão do sombrio bosque logo à frente, até que uma rápida sequência de relâmpagos rasga o ambiente, revelando a cadeira de balanço de Agnes. Há uma silhueta sentada na cadeira, movendo-se lentamente. Milena, sente um calafrio percorrer sua espinha. Enquanto a escuridão volta ao cenário perturbador, uma voz cansada ressoa pelo ambiente, cantando uma antiga canção.
“Se essa rua, se essa rua fosse minha
Eu mandava, eu mandava ladrilhar
Com pedrinhas, com pedrinhas de brilhantes
Para o meu, para o meu amor passar…”
Milena reconhece a velha canção. Naquele instante, uma forte corrente de vento corta o ambiente, batendo a porta do quarto violentamente. A garota dirige-se à saída e tenta abrir a porta sem sucesso. Estava emperrada, atravessada na velha madeira úmida do marco já bastante desgastado. Milena se vê presa naquele lugar acompanhada pela presença sombria da sua falecida avó que voltou dos mortos e estava sentada na varanda cantando sua canção preferida. A aparição se levanta e começa a andar em sua direção. Parcialmente iluminada pelo relampejar da tempestade, a avó tem um andar sinistro e desajeitado, como se tivesse saído de um pesadelo.
– Tu e a tua mãe são duas fracas. Eu vim te buscar, querida. Ela não pode mais te proteger.
Milena fica sem reação, paralisada de medo, incapaz de articular uma palavra sequer. Sua percepção da realidade estava terrivelmente afetada. Agnes continua com sua voz rouca e arrastada:
– És teimosa como teu avô, mas agora ele me obedece. E tu também vais. Vem comigo, querida, temos um lugar especial reservado para ti.
O olhar penetrante de Agnes, emitindo um brilho vermelho nefasto, espalha uma aura de angústia pelo ambiente. A garota arregala os olhos de pavor ao testemunhar sua avó morta se aproximando lentamente, apoiando-se em sua antiga bengala, revelando detalhes perturbadores de sua face desfigurada e seu sorriso macabro, que expressava uma sede insaciável por vingança. Ela então prossegue com a velha cantiga:
“Se eu roubei, se eu roubei seu coração
É porque tu roubaste o meu também
Se eu roubei, se eu roubei seu coração
É porque… é porque…
Te quero morta.”
Subitamente, a energia elétrica retorna na região, iluminando o quarto. A figura espectral da sua avó desaparece junto com a escuridão, como se tivesse se esvaído para o além. Milena, tomada por uma forte ansiedade, sente o coração esmagando o seu peito e desmaia ali mesmo, no assoalho de madeira úmido e frio.
Milena abre os olhos e é imediatamente ofuscada pela intensa claridade do sol. Ao olhar para o lado, depara-se com sua amiga Janice, visivelmente preocupada, tentando reanimá-la.
– Fiquei buzinando, mas como ninguém apareceu resolvi subir pela varanda. Por que você dormiu na cama da sua avó? – indaga Janice.
Milena percebe que não está mais no lugar onde desmaiou. Nota que a porta do quarto não está emperrada e a cadeira de balanço não está mais na varanda, mas ao lado da cama. A bengala de sua avó, que ela recorda ter guardado no armário, está lá. Com a consciência de que teve um terrível pesadelo, a garota se levanta, sentindo-se um pouco mais aliviada.
A chuva havia terminado. Era início da primavera e estava começando um belo dia com céu limpo e ensolarado. Cientes de que estavam atrasadas para as aulas na faculdade, elas se apressam. Milena sente-se bem. Pela primeira vez em meses ela esboça um sorriso em seu rosto.
Ao entrar no carro, Janice liga o rádio e começa a tocar uma velha canção que dizia… “Dentro dela tem um bosque… Que se chama solidão… No fim dele mora um anjo… Que roubou meu coração…” Então, vira-se para a amiga com um enigmático sorriso no rosto e diz: – Esta é a minha parte da música preferida.
Milena dá um grito de pavor. Ela abre os olhos. A música se dissipa como um disco de vinil arranhado. Ainda se encontrava dentro do carro de Janice, porém, estava escuro, como se fosse madrugada e a tempestade não havia terminado. Sua amiga estava ao seu lado, sentada no banco do motorista. O carro permanecia estacionado em frente à sua casa, no mesmo local do seu suposto delírio, quando havia sol.
Janice parece ter adormecido sobre o volante. Milena tenta despertá-la, e, ao tocar em seu rosto, a cabeça da amiga tomba para o lado do passageiro, revelando seu semblante cadavérico, seus olhos secos como se a alma tivesse sido dragada do corpo, sua boca entreaberta com os lábios arroxeados.
Atormentada pelo que acabara de testemunhar diante de seus olhos, Milena se vê assolada pela culpa. Enquanto a forte chuva castigava o carro, parecendo oprimir sua coragem, o cadáver de sua amiga jazia ao lado. Milena, sozinha e determinada, busca seus instintos primários de sobrevivência, reunindo suas últimas reservas de força interior. Livra-se do corpo de Janice. Dá a partida no carro e começa a dirigir naquela fria noite de tempestade, rumo ao Cemitério Bosque dos Anjos, onde sua avó estava sepultada.
Apesar da pouca distância, as ruas estavam sem iluminação e o limpador de pára-brisas mal conseguia dar conta do fluxo da água, tornando a visibilidade de Milena extremamente precária. Quase chegando ao seu destino, a garota olha para o espelho retrovisor e é impactada pelo reflexo fantasmagórico de sua avó, sentada no banco de trás do carro, com seus olhos vermelhos assombrosos e seu sorriso sádico. Em um surto de adrenalina, Milena freia bruscamente, desce do carro e corre sem olhar para trás em direção à entrada do cemitério. Com as mãos trêmulas, retira a corrente do estacionamento e adentra o local sagrado. Então, ela segue em direção ao mausoléu que abriga os restos mortais de sua família.
Chegando lá, com as roupas encharcadas, se posta diante do mausoléu da família e desaba no chão em prantos. Ajoelha-se na lama e suplica à sua avó para que a deixe em paz. Chovia muito naquele momento e Milena precisava entrar. Com a ajuda da corrente, ela puxa a pesada porta de ferro, emitindo um ruído assustador.
Dentro do mausoléu, as paredes úmidas e frias parecem se fechar ao redor, gerando um ambiente claustrofóbico. O som do coração batendo forte ecoa, acompanhado pelo uivo dos ventos que se infiltram pelas rachaduras nas paredes de pedra. Milena localiza a sepultura de Agnes sem maiores dificuldades. Aproxima-se e começa a sussurrar baixinho, demonstrando arrependimento e pedindo perdão.
Ao levantar-se, percebe algo diferente que não havia visto antes. Um artefato exótico de madeira com um aspecto tribal, preso à lápide. Os símbolos entalhados nele lembravam os mesmos gravados na bengala de sua avó, despertando a sua curiosidade. O objeto em questão não estava presente durante a cerimônia no dia do funeral. Até dois dias atrás, Milena nunca havia acreditado em forças ocultas ou visões sobrenaturais. No entanto, os eventos recentes a convenceram de que era hora de enfrentá-los.
Desconfiando que as inscrições antigas no artefato poderiam estar ligadas às aparições de sua avó, Milena, sem hesitar, decide quebrá-lo. Entre o medo e a coragem, ela agarra a corrente que havia obtido na entrada do cemitério e a usa como ferramenta improvisada para arrancar o artefato da sepultura. O objeto se solta da lápide, seguido pelo som oco de madeira se partindo ao colidir com o chão.
Uma sensação de paz se instala dentro da garota e suas lágrimas parecem expurgar todo o sofrimento, como se carregassem consigo a culpa que antes a oprimia. Sente-se mais leve, como se finalmente o espírito de sua avó tivesse encontrado o descanso eterno, deixando-a em paz. Levanta-se, respira fundo e agradece.
Decidida a dar um último adeus ao seu avô, de quem nunca havia se despedido, Milena enfrenta dificuldades para localizar a sepultura. Após andar em círculos naquele sinistro labirinto de corpos, sua exaustão física e mental flertava com a ideia da desistência. De repente, o vislumbre suave da luz da lua, penetrando entre as frestas das paredes gélidas, revela um túmulo escondido nas sombras, como se fosse um segredo guardado. Era o túmulo de seu avô.
Milena se aproxima lentamente, fecha os olhos, sussurra algumas palavras de paz, emanando boas vibrações. Ao abrir seus olhos, percebe entalhadas na pedra da lápide, quase imperceptíveis, as mesmas inscrições antigas do artefato de madeira que havia destruído há alguns minutos. Estariam seus avós envolvidos com o ocultismo? Um súbito ataque de pânico faz seu coração bater descompassadamente, Milena começa a suar frio, e então ela lembra-se das últimas palavras de sua avó, proferidas após sua morte.
“- És teimosa como teu avô, mas agora ele me obedece. E tu também vais. Vem comigo, querida, temos um lugar especial reservado para ti.”.
Em um instante, a lápide maciça sobre o túmulo de seu avô começa a mover-se, como se algo estivesse emergindo de seu interior. Momentos antes que Milena pudesse processar o que estava acontecendo, é puxada para dentro do túmulo. Um grito horripilante pode ser escutado, reverberando por toda a cripta, como se o seu coração tivesse sido arrancado do peito. A lápide se fecha com um estrondo.
Seus avós finalmente alcançam a paz que tanto almejavam, através da força sombria que agora a aprisiona na escuridão. A família, enfim, está reunida. Para sempre.