AQUILO QUE TU MAIS AMAS

Ted Lima é um colunista, ferrenho defensor da moral e ética na política. No entanto, se vê corrompendo sua vida privada com um caso extraconjugal. Decidido a consertar isso, ele pode não ter tempo para fazê-lo.

Ele clicou no botão desligar do seu computador e então olhou o relógio pela oitava vez somente naquela hora. Já não havia mais ninguém no escritório. Atrasara a conclusão do seu artigo semanal na revista de propósito, pois tinha um motivo para ser o último a deixar o prédio naquele dia. Desejava sair sem ser notado, às escuras, incógnito.

Ted Lima, Teodoro, para os íntimos, Ted, para os leitores, era um colunista proeminente na Dias Atuais, uma revista digital em ascensão, detentora de mais de um milhão de assinaturas e crescendo todos os dias. Suas colunas ácidas reviravam as entranhas do regime tirânico em formação, travestido no manto da moribunda e inútil concubina do ocidente, chamada democracia. O colunista, dotado de uma moral inabalável e um instinto de justiça quase suicida, navegava por águas turbulentas em sua vida pessoal nos últimos meses. Nem todos conseguem manter-se na linha em todas as áreas da vida. Na verdade, a maioria nunca viu uma linha para seguir em toda sua existência. Ted não seria diferente.

As luzes fluorescentes do escritório cessaram seu zumbido quando ele tocou os interruptores, deixando o local nas sombras antes de fechar a porta. “Já deveríamos ter trocado há muito tempo essas lâmpadas ultrapassadas por LED.” pensou, ao virar as costas em direção ao corredor. Tentava controlar seu nervosismo com conversa fiada dentro da própria mente.

Não quis pegar o elevador. O prédio estava silencioso como um mausoléu à meia-noite. Se houvesse alguém ali ainda, não gostaria de despertar qualquer curiosidade. Pegou as escadas sem hesitação, eram apenas seis lances até o térreo. Um homem de 43 anos não havia de estremecer, mesmo que não se exercitasse há mais de quatro anos. Uma das causas dos dois números extras em suas calças.

Antes de sair, parou em frente à portaria vazia. O barulho dos carros soava abafado, rompendo as duas portas de vidro fechadas. O ruído das rodas molhadas, cruzando a principal avenida do bairro, ressoava no pequeno hall do prédio comercial. Do bolso das calças sociais, Ted sacou o celular. Olhou as mensagens. Um novo recado de sua esposa.

“Não virá mesmo para o jantar hoje?” — Mensagem recebida meia hora antes.

Ele voltou para a lista de mensagens e rolou, voltou para o topo, atualizou os recados e nada novo apareceu. Quem esperava que lhe mandasse mensagem estava logo abaixo da sua esposa no histórico de conversas. Na prévia da mensagem ainda estava a sua última afirmação. “Te espero lá. Bjs.” Seus lábios se contraíram com certa decepção. Então abriu a conversa com Antonella.

“Ainda estou preso aqui. Janice espera ler este artigo amanhã cedo. Fiquei esperando alguns informantes que me deixaram na mão durante a tarde. Atravancou tudo. Chego mais tarde. Te amo!” — Enviou, esperou a confirmação e voltou para a lista de conversas. “Te amo…” — Essa frase reverberou em seus pensamentos por um segundo. Atualizou novamente. Nada.

O homem suspirou fundo e saiu para o ar úmido da rua. Enquanto caminhava, sentia a garoa do inverno prematuro gelar suas bochechas. Levantou a gola do casaco e lamentou não ter trazido um cachecol. Tinha pela frente cinco quadras de caminhada em direção ao distrito industrial. Local estratégico, onde vinha se encontrando com uma moça 19 anos mais jovem. Um motel quase abandonado, em uma área morta da cidade, naquele horário. Era o local perfeito.

Passo após passo, seus pensamentos corroíam sua alma como lobos roem os ossos de uma carcaça em épocas de caça fraca. Uma carreira feita sobre apontar os abusos e corrupções do estado, e agora ele corrompia sua vida privada com uma traição imperdoável.

Seu relacionamento de 11 anos vinha se deteriorando aos poucos. Antonella fora seu grande amor. Loucamente apaixonado, fez tudo por ela. Ela, por sua vez, o respeitava e o admirava. Naquele momento, enquanto caminhava na chuva, era como se essas duas pessoas tivessem morrido quatro anos antes quando Antonella perdeu o filho no seu ventre em um acidente doméstico bobo. A mulher ficou estéril depois deste evento trágico, sepultando o sonho de família. Ted afundou gradualmente numa melancolia obscura, encastelando-se no trabalho para sobreviver. Ela mudou. Mudou tanto que tornara-se irreconhecível. A mulher doce deu lugar a uma criatura sarcástica, impiedosa, controladora e que não se cuidava mais. Passava os dias vagando pela enorme casa, construída especialmente para ela em um novo bairro da cidade.

Um carro cruzou por uma poça de água próximo ao meio fio, quase molhando Ted, libertando-o de seus pensamentos. Ele passou as mãos nos cabelos molhados pelas gotículas suspensas no ar e então olhou para o relógio novamente. 19:35, apontavam os ponteiros do relógio em seu pulso. Um presente de casamento.

Restavam apenas três quadras para chegar ao ponto de encontro com Eduarda, sua amante. Era uma garota linda, jovem e trabalhadora. Seu corpo em forma sobressaía sobre o uniforme do posto de gasolina onde servia como caixa. Grandes olhos azuis, radiantes, eram aquilo que ele mais amava naquela garota. Eram cheios de vida. Vibravam com a juventude e todas as possibilidades que a vida poderia lhe proporcionar pela frente. Apesar do buraco de país onde morava. Tinha lindos e longos cabelos cacheados, castanhos-claro. — Ah, os cachos… —  Falou em voz alta. Arrependendo-se logo em seguida.

— Será a última vez. Não posso levar isso adiante. — Faltavam poucos passos para se camuflar na sombra de uma grande árvore, quatro prédios antes do Motel. Local onde se encontraram por tantas vezes que ele já nem sabia mais.

Parado ao pé da árvore, abraçando o corpo para se aquecer, ele continuou seu discurso auto-hipnótico.

— Esta noite acabarei com isso. Eu tenho um compromisso com Antonella. Casamos na Igreja, na presença de Deus. Santo DEUS! O que estou fazendo?

Em sua mente era impossível não fazer comparações. As horas acaloradas que passava junto ao corpo macio de Eduarda. Sobre suas formas perfeitas, olhando em seus olhos azuis-metálico e regozijando em prazer. Aquilo que ele mais amava. Em contraponto, quando voltava para casa depois de um dia fatigante, recebia um “Oi” seco e meia-dúzia de comentários grosseiros de uma figura jogada ao sofá.

A chuva fina continuava caindo lentamente, mas já não o molhava mais. Ted sacou o celular do bolso e o brilho iluminou seu rosto. 19:45. Já estava na hora. “Eduarda nunca atrasou antes. Sempre parecia tão ansiosa quanto eu.” Ele abriu o mensageiro e nada novo havia lá. Nem Eduarda, nem Antonella. Sim, Antonella. Isso acabou por surpreendê-lo ainda mais. Era tão rígida. Costumava mandar mensagens uma atrás da outra quando Ted não estava lá para entediar-se ao lado dela. “Ainda há amor? Por que estou preocupado com ela?” Ele inspirou profundamente, deixando que o ar úmido gelasse os pulmões.

“Estou preocupado com Antonella. Tenho… temos que dar uma chance a mais para nós. Trabalharei menos, darei mais atenção a ela. Nos reconstruiremos e quem sabe adotaremos um filho. Sim! Acabarei com Eduarda hoje. Ela não é uma pessoa amarga e não dará com a língua nos dentes. Ela encontrará alguém decente e, o mais importante, que a trate da forma digna como ela realmente merece.  Confessarei-me com o padre mais próximo. Ah sim, sim! Farei isso! Arrastarei Antonella para uma terapia de casal.”

10 minutos se passaram. E depois, mais 15. Eduarda não apareceu. Na mente de Ted isso começava a soar como um livramento. Talvez ela tenha encontrado outra pessoa e não quis terminar o suposto relacionamento. Ora, não tinha compromisso com ele. Por que se preocupar, não é mesmo? Está certo, ele não tinha o que cobrar dela. Tanto melhor. Assim cada um seguiria sua vida, sem drama, sem complicações.

Ted pegou novamente o celular. Olhou para a tela, depois verificou as duas esquinas e pensou duas vezes antes de digitar. “Terminei. Estou indo para casa.” Enviou. Poucos segundos depois recebeu a resposta. “Que ótimo meu amor. Vou preparar aquilo que tu mais amas.” Estranheza, esse é o exato sentimento que a mensagem causou no homem parado embaixo de uma árvore, naquela noite úmida.

— Antonella sendo amável? Quanto tempo isso não acontece? — Ele comentou com seus botões.

Poucos minutos depois, Ted estava em um táxi rumo a sua casa. As luzes da cidade cruzavam apressadas pela janela cheia de gotículas de água. No brilho refletido através delas, o homem se perdeu em seus pensamentos outra vez.

“Meu amor… quanto tempo não ouço isso vindo de Antonella? No entanto, Eduarda, chegou a esboçar a frase algumas semanas atrás. Ainda bem que não o fez. Teria sido muito mais difícil. Por que ela não apareceu? Isso está me matando também… É melhor assim, Teodoro. Relaxa!”

Enquanto passava pela ponte que levava ao bairro onde morava, seu coração apertou. Sentiu como se uma presença amedrontadora estivesse sentada ao seu lado, no banco de trás daquele carro. Olhou assustado para o lado mas nada viu. Em seguida, outro pensamento tomou sua mente de forma arrebatadora. “Aquilo que mais amas…” Aquela frase parecia ter espreitado sua noite até então, como um felino tentado por sua presa na floresta. Indo e voltando, e agora fora pronunciada pela mulher que agonizava na depressão e loucura em sua casa. Pensamentos terríveis. O que isso queria dizer? — Nada! — Falou em voz alta. O motorista pareceu não ligar para sua palavra solta. Ted pigarreou e se recompôs, passando as mãos sobre suas calças úmidas. 

Com uma freada brusca, o táxi parou à porta da sua casa. O colunista pagou o homem e então desceu. Por dois segundos ficou observando a porta pintada de verniz nogueira, iluminada pela arandela ligada. Ele respirou fundo, ganhando forças para dar o primeiro passo. Suas pernas se moviam pesadamente, pareciam ter receio de chegar em casa.

— Antonella! Cheguei! Olha, que dia, hein!? Janice passou o dia no meu cangote, o informante desapareceu com os documentos… — Foi logo se justificando, à espera de comentários ríspidos vindos da contra-parte.

— Olá, querido! Que bom que conseguiu voltar para casa em tempo para o jantar especial que preparei pra ti. — Antonella apareceu no hall de entrada, vindo da sala de estar escura. Estava de banho recém tomado, penteada e vestindo um belo vestido azul. O perfume levemente doce, há muito tempo abandonado, agora pairava no ar. Ela estava bonita e radiante como não esteve há muito tempo.

— Está linda, meu amor! É ótimo te ver assim. Preparou algo especial para nós?

— Pode ter certeza. Vamos nos servir. Está na mesa da cozinha.

Ted colocou o casaco no cabide da entrada, se bateu um pouco, pois ainda se sentia molhado. Todo aquele sentimento ruim parecia não ter motivo algum. Sentiu-se mal por ter aventado qualquer coisa má sobre a situação, no entanto, os ventos pareciam milagrosamente terem mudado e a partir daquela noite suas vidas iriam mudar.

Na mesa da cozinha os pratos estavam dispostos sobre o melhor jogo americano da casa, com os talheres perfeitamente alinhados ao lado. À frente, uma grande panela tampada esperava por ele. Seu apetite abriu.

— Sirva-se! — Ela falou às suas costas.

Um arrepio inexplicável subiu sua espinha na mesma hora. Ele aproximou-se da mesa e levantou a tampa com cuidado. No interior da panela havia um ensopado de carne ainda quente. Flutuando na superfície, dois olhos azuis o fitavam de forma macabra. Os lindos olhos de Eduarda. — Aquilo que tu mais amava… — Um sussurro veio de suas costas enquanto uma sombra tomou a mesa. Amedrontado, Ted soltou a tampa, virando rapidamente. Muito próximo a ele, estava Antonella com uma brilhante faca de carne levantada sobre a cabeça. A raiva e a loucura estavam estampadas em sua face gélida e embriagada pela vingança.

Dois golpes secos foram desferidos, com Teodoro tentando proteger-se com as mãos e os olhos fechados. A lâmina cruzou quente pela manga de sua camisa, rasgando a pele do seu antebraço. Um grito de dor fugiu de sua garganta e mais um golpe foi executado, acertando-o no ombro. Desesperado, Ted empurrou com toda sua força a esposa ensandecida. Ela desequilibrou-se, dando dois passos para trás e depois batendo as costas em um dos armário, quando caiu.

— Maldito! Te arrastarei para o inferno comigo. Me deixas-te amargurando nesse purgatório enquanto se refestelava com uma vagabunda pela rua!

O homem ficou sem palavras. Aquela não era mais sua mulher. Mas a quanto tempo não era mais ela? Cerrando os dentes e controlando a dor, ele puxou a faca que ainda estava enfiada em sua carne. Ela saiu, liberando um jato de sangue quente. Com os olhos marejados, ele largou a arma no chão e correu para a porta mais próxima. Esta levava à lavanderia e depois à garagem, onde poderia tomar a rua e buscar ajuda.

Correu como pôde, seus passos débeis e a respiração ofegante não deixavam que se movesse de forma ágil. Ao cruzar a porta e adentrar o cômodo tomado pela escuridão, ele tropeçou em algo. Algo grande que o fez cair no chão. Segurando o braço direito, Teodoro despencou sem poder se proteger, batendo a cabeça na cerâmica fria da lavanderia. A imagem ofuscou-se em seus olhos e quando voltou ao normal, ele pode ver o corpo de Eduarda, banhado em sangue. O belo rosto, próximo ao seu, estava retorcido e petrificado em pavor, com as órbitas dos olhos vazias o encarando. Foi inevitável, outro grito de horror emergiu de seu interior.

Antonella tomou a porta iluminada da cozinha, calmamente ela se aproximou, armada da faca que agora emanava um brilho carmim e pegajoso. Sem se apressar, ela montou sobre o corpo de Teodoro, ajeitou seu vestido, aproximou-se do rosto do seu marido apavorado e sussurrou.

— Eu já fui aquilo que tu mais amou…

Com um corte lento e extremamente doloroso, ela cortou a garganta do esposo e depois a própria. Ambos se debateram no chão, um sobre o outro, se esvaindo em sangue até pararem e silenciarem para sempre.

A cena foi encontrada dias mais tarde e as notícias tomaram os jornais pagos pelo regime ditatorial. “Colunista extremista de oposição provoca tragédia por abuso e negligência familiar.”

Sobre o autor: Pintor, Designer, Músico e Escritor. Um apreciador do tenebrismo do Barroco e as paisagens bucólicas do Realismo, mas na literatura e cinema prefere o Terror viceral. Tem um estilo direto e simples, gosta de explorar uma narrativa dinâmica em um contexto que chama de Horror Interiorano Retrô. Contando histórias em cenários de cidades pequenas em um passado recente atormentado por monstros, demônios e esquisitices. G.F. Rodrigues traz histórias para os apreciadores dos clássicos dos anos 70 e 80.

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Apresentado pelo enigmático Amadeus Cripta, guardião dos segredos mais sombrios escondido nas profundezas de uma antiga catacumba, "Ecos & Silêncio - Volume 1" é uma coleção imperdível de contos macabros que promete arrepiar até as almas mais corajosas. Neste volume você encontrará Vozes do Submundo, O Jugo da Escuridão, Safra Perfeita e Ventos Passados. Sente-se, relaxe e desfrute da escuridão.

Vozes do Submundo: Um conto cheio de aventura e criaturas sinistras, onde o irmão mais velho embarca numa jornada desesperada para salvar o mais novo.

O Jugo da Escuridão: Um jovem promissor, recém-promovido, é surpreendido pela violência à porta de sua casa. Durante treze dias, as coisas irão piorar expressivamente, mergulhando-o num abismo de desespero e medo.

Safra Perfeita: As coisas não vão bem na fazenda dos Maldonado. A filha do fazendeiro, Elisa, tem revelações terríveis e observará mudanças bizarras na fazenda. Será uma oportunidade ou uma maldição?

Ventos do Passado: A história de Celina. Uma mulher na meia idade, ávida por livros de romance. Desejosa por um amor idealizado, ela o recebe de onde menos espera.

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Ano: 2024

ISBN: 9786501106076

Páginas: 92

Papel: Polen 80g

Formato: 14x21cm

Acabamento: Brochura

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