A chuva castigava São Paulo naquela noite. As luzes amarelas das ruas piscavam, falhando em iluminar as calçadas encharcadas. No ateliê de Tenebris o silêncio era quase sufocante, interrompido apenas pelo som do grafite deslizando no papel. Sentado em sua mesa, com o rosto oculto pelas sombras, ele desenhava com uma intensidade doentia, seus olhos fixos na folha em branco como se estivesse hipnotizado.
A corrente ao redor de seu braço se movia suavemente, transformando-se em um lápis. Suas mãos pareciam movidas por uma força invisível. A cada linha traçada, um novo monstro surgia, grotesco e assustador, saído das profundezas mais obscuras da sua imaginação. Mas não era só isso. Algo estava mudando. Os desenhos, antes figuras distantes e irreais, agora pareciam… vivos.
Ele olhou para o primeiro deles. Uma criatura esquelética com olhos vazios, braços longos e uma boca retorcida num sorriso macabro. Tenebris piscou por um momento, e teve a sensação de que o desenho havia se mexido. O sorriso da criatura pareceu se expandir levemente, como se estivesse ciente de sua própria existência. Ele afastou o pensamento, culpando a falta de sono.
Tenebris sabia que suas criações vinham de um lugar escuro dentro dele, um lugar que ele evitava pensar. Mas ultimamente, aquele espaço sombrio parecia estar crescendo, invadindo seus pensamentos e sonhos. Ele acordava à noite coberto de suor, com o sabor metálico de sangue na boca, embora não conseguisse lembrar o porquê.
Enquanto olhava para o desenho, uma sensação estranha percorreu sua espinha. Ele ouviu um ruído suave, quase imperceptível, como um sussurro vindo de algum canto do ateliê. Virou-se lentamente, seus olhos varrendo o espaço escuro. Nada.
Mas o sussurro não cessou, de alguma forma, ele sabia. Sabia que o som vinha do papel, ele olhou de novo para o desenho, e o que viu o fez estremecer. A criatura estava se movendo, seus braços esqueléticos se arrastavam lentamente para fora da página, como se tentassem se libertar, tenebris piscou, incrédulo. A criatura começou a se erguer, ganhando forma, como se a folha de papel estivesse rasgando e libertando o monstro de seu confinamento.
O cheiro acre de enxofre invadiu o ambiente, Tenebris deu um passo para trás, seu coração martelando no peito.”Isso não é real”, murmurou para si mesmo, mas sabia que, de algum modo, era. A criatura saiu da folha completamente, sua forma embaçada pela escuridão ao redor. Ela o encarou com olhos sem vida, mas com uma malícia que parecia penetrar diretamente sua alma.
Tenebris tentou gritar, mas sua voz ficou presa na garganta. O monstro avançou lentamente, os braços longos e retorcidos estendendo-se em sua direção. Em um gesto desesperado, ele agarrou o lápis em sua mão, que se acendeu em chamas com um brilho sobrenatural. Com um golpe, ele perfurou o peito da criatura, que soltou um grito gélido e desapareceu em uma nuvem de sombra.
O ateliê estava novamente em silêncio, o único som era o da respiração pesada de Tenebris. Ele olhou para o papel em sua mesa, o desenho havia desaparecido, mas no lugar, havia uma mancha negra, como se algo tivesse sido queimado ali.
Ele se jogou na cadeira, sentindo o cansaço pesar em seus ossos. Mas o sussurro não havia cessado. Ele ainda estava lá, fraco, quase imperceptível, mas inegável. Como um eco distante, algo nas sombras o chamava. E Tenebris sabia que aquilo não acabaria ali.
O que ele havia libertado de dentro de si? O que ele havia desenhado não era apenas um monstro… era algo muito mais antigo, mais profundo. Algo que sempre esteve lá, apenas esperando ser trazido à tona. Seus desenhos, ele percebeu com horror, não eram mais criações suas. Eles estavam usando suas mãos, seus talentos, para se libertarem.
De repente, a corrente ao redor de seu braço apertou, como se tivesse vontade própria. O lápis caiu de sua mão, girando lentamente no chão antes de parar ao lado de sua cadeira. Ele olhou para sua mão, tremendo. E então, pela primeira vez, sentiu. Não estava mais sozinho naquele ateliê. Algo estava com ele, dentro dele.
Tenebris se levantou bruscamente, os olhos arregalados, tentando controlar o pânico crescente. No fundo do ateliê, um corvo negro pousou na janela, seus olhos ficaram fixos nele. O pássaro o encarou com uma inteligência maligna, como se soubesse mais do que ele próprio.
A partir daquele momento, a escuridão que sempre rondara seus desenhos parecia ter um novo significado. Não era apenas criatividade sombria ou fruto de sua imaginação doente. Era uma parte dele, algo que ele não compreendia, mas que estava ali, esperando o momento certo para tomar o controle.
Tenebris olhou novamente para o lápis no chão. Ele sabia que continuaria desenhando, sabia que não conseguiria parar. Mas também sabia que cada desenho traria algo à vida. Algo das sombras que ele mal começava a entender. E, no fundo de sua mente, o sussurro continuava, suave e persistente.
“Apenas desenhe… e deixe a escuridão fazer o resto.”