A BANHEIRA

Uma mulher com a vida desabando, onde erros profundos serão cobrados por algo que ela não entende até o último minuto.

Ainda estava no meio da semana, era apenas quarta-feira e Sofia já chegava esgotada em casa depois do trabalho. A situação estava cada vez pior na floricultura em que trabalhava, o que piorava o cenário geral de sua vida. A patroa delegou a reorganização dos produtos da loja a ela e Verônica desfez. Organizou tudo do seu jeito. Sofia faz, Verônica desfaz. Sofia propõe, Verônica contradiz. Fora todas as vezes que ouviu Verônica soltando indiretas sobre ela para a chefe.  O que aquela vaca quer? Era o que Sofia pensava enquanto fechava o carro na garagem do prédio dos anos 60, desgastado pelos seus mais de 30 anos. Tinham apenas 4 apartamentos, mas somente ela seguia alugando ali naquela situação. Mofo, tacos soltos e opacos e paredes estufadas eram suas recepções em casa. Bom. Era melhor lá do que na floricultura com aquela vadia.

Abriu a porta de madeira, mole como isopor, completamente comida pelos cupins, passou e só a empurrou de volta. Verificou sua caixa de correspondências e tinha apenas propagandas e um boleto. Respirou fundo, fechou a caixa e subiu as escadas, que por incrível que pareça, eram de mármore. O prédio deveria ser muito luxuoso na época em que foi construído, mas hoje a água que sai de seu encanamento tem gosto de ferrugem. Sofia entrou no apartamento, viu a luz alaranjada que vinha da sala, sentiu um pouco de conforto e solidão, já que estava separada há alguns meses. O sol do fim da tarde batia bem na parede da sala durante o outono, passando pela cortina de rendas brancas que hoje não era mais tão branca assim. Estavam encardidas da fuligem dos milhares de ônibus que passavam bem em frente a sua sacada todos os dias. Aproveitando aquela sensação, ela solta a bolsa no móvel mais próximo e senta no sofá para pegar qualquer energia boa que o sol possa estar emanando naquele entardecer.

– Maldita vagabunda presunçosa. O que ela acha que eu fiz pra ela? Acha que estou competindo por algum tipo de gerência? Bem, é verdade, mas isso não é normal? Só queria trabalhar em paz e ganhar meu salário. Saco. O que eu estou fazendo da minha vida? Me sinto sozinha. Ele não aguentou a minha decisão e me largou. Qual o problema dele? Hoje em dia não é mais como antigamente. Não tínhamos condição de continuar com aquilo.

Ficou no sofá trocando de pensamentos até o laranja ficar vermelho e então esfriar. Sua vida não era ótima, mas também não era ruim. Era regular, como a da maioria das pessoas. Porém naquele momento ela descia rápido como na primeira queda de uma montanha russa. Antes tinha um emprego com possibilidades de crescimento, um noivo que queria uma família e um teto regular com um bom preço de aluguel. Perdeu o companheiro e agora andava à beira de perder o emprego também. Era uma deslocada? Não, era uma carreirista. É assim que chamavam agora, não é? E também não era uma mãe de família. Estava exausta de tudo e de todos.

Sofia se levantou. Queria tomar um banho. Precisava relaxar e tirar todos aqueles pensamentos de sua cabeça. O apartamento tinha seus problemas, mas ela adorava a banheira branca antiga que contrastava com a cor dos azulejos de dois tons de azul nas paredes. Entrou no banheiro, ligou a luz e fechou a porta. Se observando no espelho tirou a roupa, achou meia dúzia de defeitos em seu rosto e nas gordurinhas da barriga. Levantou os seios e lembrou como eram na sua adolescência e imaginou como ficariam com silicone se tivesse dinheiro para isso.

Depois de se analisar crítica e impiedosamente, girou o registro e deixou a água cair. Enquanto esperava o aquecedor fazer o seu trabalho, escutou um ruído vindo do ralo que chamou sua atenção. Um gorgolejar seguido de um raspar muito estranho. Pensou imediatamente que o prédio já deveria ter passado por uma reforma nos encanamentos fazia alguns bons anos. Seus encanamentos de ferro deveriam estar se desfazendo por baixo da massa úmida de sua estrutura. Sofia já havia comentado com Seu Alberto, o senhorio. Mas tão quebrado quanto o próprio prédio, não tinha dinheiro para fazer nada. Naquele momento, sem outros inquilinos, a situação tinha piorado.

Mais um soluçar dos canos, e ela decide se aproximar do ralo para ouvir melhor o que estava acontecendo. Do escuro profundo do buraco, o som parecia chegar cada vez mais próximo. Deve estar entupindo, pensou. Um calafrio rasga seu corpo de baixo para cima, os ombros se arquearam e os dentes rangeram. Um pensamento intrusivo, uma lembrança daquele banheiro há 5 semanas atrás. 

De volta a si e sem ter um desentupidor ou algo do tipo, ela entra na banheira molhada e com as duas mão tenta fazer vácuo no ralo algumas vezes com o intuito de observar mudanças no som. A água que seguia correndo pela torneira já estava quente, fazendo o vapor tomar conta do banheiro. Mais três, quatro pressionadas sobre o ralo, e o barulho pareceu cessar. O que quer que fosse devia ter ido embora. Aproximou o rosto mais uma vez e não escutou mais os ruídos. Quando olhou novamente, uma pequena cobra verde escuro saía do buraco e estava quase tocando o seu rosto.

Por instinto, Sofia, se levantou rapidamente, esquecendo que estava molhada. Escorregou na superfície lisa da banheira de louça e desequilibrada se segurou na cortina de plástico. As argolas de plástico se romperam uma a uma e ela caiu sobre o piso cinza do banheiro, provocando um som grave e alto. Rastejando escorregadiamente ela se afasta da banheira, parou apenas quando bateu suas costas contra a porta. Com os olhos arregalados, respirou ofegante por alguns instantes enquanto ouvia o som da água e da cobra serpenteando dentro da banheira. Se levantou, cuidando para não escorregar novamente. Chegou perto e viu a coisa ali dentro. Olhou para os lados, estava procurando algo para se defender, mas a única coisa comprida e dura que tinha era a escova da privada. Armou-se do que tinha. Agarrando a escova com as duas mãos, o mais forte que podia, Sofia observou por alguns instantes o animal, esperando o momento certo. Bateu na criatura com a escova algumas vezes e tudo que conseguiu foi irritá-la ainda mais. Como aquilo havia entrado ali?

Enquanto atacava a cobra com sua arma totalmente ineficaz, outras duas cobras sobem pelo ralo. Uma com anéis coloridos como uma cobra coral e outra grande e grossa como uma jararaca adulta. Incrédula e espantada, Sofia solta a escova e se afasta. Não conseguia compreender como coisas daquele tamanho poderiam estar saindo de um ralo de banheira. Aquilo era completamente surreal. Tinha que sair dali o mais rápido que conseguisse. Chegou até a porta se equilibrando e tentou virar a chave. Suas mãos trêmulas e molhadas a impediram de executar tão simples ação. Forçando a porta desajeitadamente a chave se solta da fechadura e cai no chão, quica, bate em seu pé e escorrega por debaixo da fresta da porta.

– Não, não, não, não… por que isso está acontecendo comigo? É algum tipo de punição?

O vapor tomou conta do banheiro, transformando o ar em algo denso demais para ser respirado de forma ofegante. Estava trancada num cubículo aterrorizante. Gritou a plenos pulmões, mas ninguém iria ouvi-la, pois estava sozinha no prédio. A janela sobre a banheira dava para apenas uma casa grande e antiga, abandonada há vários anos, pronta para ser demolida. A mulher, desesperada, batia na porta, gritava o quanto podia, chorava de desespero. Mas nada adiantava. Se virou e escorada na porta sólida do banheiro, observou o que acontecia na banheira. Uma centena de cobras de todos os tipos se misturavam de forma inquietante à água, enchendo a banheira rapidamente, produzindo um som molhado e leitoso que eriçava sua pele. O cheiro metálico que impregnava seu nariz a fazia salivar e lacrimejar. No entanto, não sabia mais se estava lacrimejando ou chorando. Talvez os dois. O odor era semelhante ao da ferrugem dos encanamentos, só que imensuravelmente mais forte, completando toda aquela cena grotesca que desabara sobre sua medíocre vida.

Agora estava muda, perdida em sua agonia, sem saber o que fazer, sem saber o porquê de tudo aquilo. Sentiu algo denso e quente escorrer por suas coxas. Após tentar se limpar percebeu o vermelho escuro que sujava sua mão por completo e então um novo calafrio subiu sua espinha. Lembrou imediatamente da terrível escolha que fizera naquele banheiro semanas antes. O sangue que escorreu pelo ralo da banheira enquanto interrompia sua gravidez despertou algo terrível, gestando nas entranhas do antigo prédio o próprio mal. Seria essa a abominável materialização de seu próprio inferno? Enfraquecida, sangrando, soluçando em prantos, Sofia sentou-se escorada na porta, observando a banheira transbordar de água turva e serpentes. Ela simplesmente desistiu, abriu as pernas e esperou enquanto a primeira despencou da banheira e veio em sua direção. Reluzente e escarlate, com os olhos negros como o fundo de um poço esquecido, ela deslizou silenciosamente para o fundo da alma da pobre mulher, antes que ela pudesse terminar suas suplicas desesperadas num ato de contrição final.

– Meu Deus, eu me arrependo, de todo coração, de todos meus pecados e os detesto, porque pecando não só mereço as penas que justamente estabelecestes, mas principalmente porque Vos ofendi a Vós, sumo bem e… …

Sobre o autor: Pintor, Designer, Músico e Escritor. Um apreciador do tenebrismo do Barroco e as paisagens bucólicas do Realismo, mas na literatura e cinema prefere o Terror viceral. Tem um estilo direto e simples, gosta de explorar uma narrativa dinâmica em um contexto que chama de Horror Interiorano Retrô. Contando histórias em cenários de cidades pequenas em um passado recente atormentado por monstros, demônios e esquisitices. G.F. Rodrigues traz histórias para os apreciadores dos clássicos dos anos 70 e 80.

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Apresentado pelo enigmático Amadeus Cripta, guardião dos segredos mais sombrios escondido nas profundezas de uma antiga catacumba, "Ecos & Silêncio - Volume 1" é uma coleção imperdível de contos macabros que promete arrepiar até as almas mais corajosas. Neste volume você encontrará Vozes do Submundo, O Jugo da Escuridão, Safra Perfeita e Ventos Passados. Sente-se, relaxe e desfrute da escuridão.

Vozes do Submundo: Um conto cheio de aventura e criaturas sinistras, onde o irmão mais velho embarca numa jornada desesperada para salvar o mais novo.

O Jugo da Escuridão: Um jovem promissor, recém-promovido, é surpreendido pela violência à porta de sua casa. Durante treze dias, as coisas irão piorar expressivamente, mergulhando-o num abismo de desespero e medo.

Safra Perfeita: As coisas não vão bem na fazenda dos Maldonado. A filha do fazendeiro, Elisa, tem revelações terríveis e observará mudanças bizarras na fazenda. Será uma oportunidade ou uma maldição?

Ventos do Passado: A história de Celina. Uma mulher na meia idade, ávida por livros de romance. Desejosa por um amor idealizado, ela o recebe de onde menos espera.

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Ano: 2024

ISBN: 9786501106076

Páginas: 92

Papel: Polen 80g

Formato: 14x21cm

Acabamento: Brochura

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