XEQUE-MATE

Um veterano de guerra vivia uma vida digna com sua família até que 50 anos depois, seu pior pesadelo volta para assombrá-lo. E ele não está sozinho.

Acordo. Estou empapado de suor. Era uma daquelas noites intermináveis de pesadelos cíclicos que parecia durar uma eternidade. Não consigo lembrar a que horas me deitei ontem, não tenho recordações do fim do dia. Dormi tão profundamente que não consigo dizer se estou na minha cama ao lado da minha esposa ou se adormeci no sofá da sala. Tento me levantar. Percebo que estou com paralisia do sono e não consigo mexer minhas pálpebras. Começo a me agonizar. E se eu estiver no sofá da sala? E se acabei adormecendo no escritório?  

Ainda paralisado, começo a puxar as lembranças… com uma certa dificuldade. Justo eu, que sempre tive uma memória invejável? Campeão universitário de xadrez, sempre estive dois passos à frente em qualquer situação adversa. A paralisia já deveria ter passado, geralmente leva de dois a três minutos, quando lembro que não posso estar dormindo no meu escritório, pois me aposentei do ramo da contabilidade já faz sete anos. Vendemos o escritório para tirarmos aquelas férias na Tailândia. Ou terá sido na Indonésia? Nossa, realmente minha memória está falhando. Algo incomum para um jovem sexagenário. 

Repentinamente sou tomado por uma sensação de desconforto. Algo ruim acaba de aparecer na minha mente. Um pensamento obsessivo. Preciso saber o que aconteceu comigo ontem. Será que acabei bebendo aquele uísque que Mick me presenteou? Provavelmente estou de ressaca. Não contarei nada a meu filho mais velho, direi que bebi o uísque com a minha esposa, mesmo que ela não seja chegada em álcool. O caçula provavelmente vai saber… ele sempre foi o mais esperto dos irmãos. O… como é que… Nossa! Acabo de esquecer o nome do meu filho mais novo. Eu não estou de ressaca… minhas lembranças estão simplesmente dissipando-se. Preciso dormir mais uma hora ou uma hora e meia. Às vezes precisamos dar uma “reiniciada” na máquina para evitar dar “tilt”.

Acho que consegui dormir, não tenho certeza, pois estou consciente. Que escuridão… que cheiro é este? Minha visão está voltando aos poucos, assim como todos os meus sentidos, porém não estou mais em minha cama. Está escuro como uma noite sem estrelas. Caminho por um campo cuja grama está toda queimada, iluminado por uma névoa azul fosforescente. Há um relevo bastante montanhoso com densas florestas ao redor. Nem um sinal de vida. Já vi este cenário antes… posso escutar o som do mar ao longe. Está frio e venta constantemente. Pareço estar em um vale abandonado em alguma região do sudeste asiático. Estive no Vietnã como voluntário em 1974 e o local me parece bastante familiar, assim como este cheiro de brasa e sangue. Faz exatamente 50 anos… eu nunca mais senti esse cheiro. Acho que não quero continuar sonhando. Está na hora de me levantar. Definitivamente eu não consigo.

Escuto um lamurio angustiante ao longe. Fico paralisado. Faz sentido ajudar alguém em apuros… em um sonho? Será outro pesadelo? Decido ir ao encontro de quem ou o que quer que seja, afinal de contas, sempre pedi por uma segunda chance. E além do mais… eu devo isso. Para mim mesmo? Não. Para o Soldado Elmer, do 1º Batalhão, 15º Regimento de Infantaria. Eu não tive escolha, fomos pegos em uma emboscada, era ele ou eu. A vida nos agracia com decisões cruéis e impossíveis. Ter de abandonar seu compatriota ferido em meio a uma batalha sangrenta para salvar a própria vida… vida essa que muitas vezes assemelha-se a um tabuleiro de xadrez. 

Treze dias passados deste dia fatídico. Nosso serviço de inteligência obteve a localização dos homens que o capturaram. A informação era de que ele ainda estaria vivo, porém, encontrava-se em condições precárias devido à torturas físicas e psicológicas, assim como outros prisioneiros de guerra. Foi autorizada então a Operação Eutanásia. Foi um massacre. O pelotão vietcong inteiro foi carbonizado vivo após a explosão de bomba napalm, abrindo uma clareira de dois quilômetros de diâmetro no meio da selva. Nada sobreviveu. Os restos mortais de Elmer nunca foram identificados. Eu nem consigo imaginar o que devem ter feito com ele durante todos aqueles dias. Procurei nunca pensar nisso, sempre foquei em ser o melhor em tudo o que faço. Tenho uma vida próspera e honrada. Será que tive uma vida honrada mesmo? Hoje eu vivo pela minha família. E como eu vinha dizendo… fui campeão de xadrez. Xeque-mate é uma questão de sobrevivência. Quem disse que é justo? A vida não é justa. Fomos treinados para uma mente estratégica. “Vença hoje, chore amanhã”. É o que repetíamos como um mantra durante aqueles dias. 

Finalmente chego no local. Pelo menos onde minha audição me trouxe. Olho para os lados. Não vejo nada além de relva queimada. Há muita fumaça. Por um momento esqueço que estou preso em um sonho e preocupado com alguém que não existe, em um cenário apocalíptico, porém realista. Era um pedido de socorro ou apenas um lamurio? De qualquer forma não consigo encontrá-lo… não consigo acordar. Acredito que algo esteja me mantendo preso aqui, por mais insano que isso possa soar. De repente alguma coisa chama a minha atenção ao longe. Era uma cruz. Uma cruz formada por duas peças de um fuzil M-16 desmontado. Usávamos este em missões na selva. Em um raio de vinte metros de onde está o fuzil não há vegetação. Ao que tudo indica foi ali o epicentro de uma explosão. Começo a andar em direção a ele, parece um túmulo esquecido no tempo. À medida que me aproximo escuto sussurros ao vento que gelam a minha espinha.  Me ajoelho em frente ao fuzil e começo a orar. Nunca tive um lado espiritual… até este momento. O motivo? Eu reconheceria este M-16 em qualquer momento da minha vida. Ele era meu. Entreguei ao Elmer antes de… deixa pra lá. 

Subitamente tudo fica tomado por uma fumaça cinzenta e o túmulo improvisado desaparece da minha vista. Algo se aproxima lentamente. Ouço sons de ossos estralando. Estão marchando. Tento encontrar uma direção segura para sair dali o mais rápido possível, mas não consigo enxergar nem a palma da minha mão. Sinto a presença deles à minha volta e definitivamente não há nada que eu possa fazer. Espero que seja breve e eu consiga despertar logo. Estão a dois palmos de distância do meu rosto, consigo sentir o cheiro de morte exalando de sua carne putrefata. O medo me paralisa. Tento gritar para chamar a atenção da minha esposa que está dormindo ao meu lado, até que meu pulmão é perfurado com um golpe de baioneta e a minha voz desaparece. A dor é lancinante. E eu sei que este é apenas o começo…

Abro os olhos. Já são seis horas da manhã de um sábado nublado e úmido. Realmente eu havia adormecido no sofá. Parece que tomei um banho de sal grosso. Minha alma está leve e meu corpo encharcado. Há uma garrafa de uísque vazia no canto da sala. Vai ver é por isso que ela me botou pra dormir no sofá. Aos poucos minha memória e minha coordenação vão voltando ao normal. Não há marcas no meu corpo, contudo, parecia muito real… a dor, o medo, o cheiro, todo o déjà vu foi muito real. Nunca mais vou aceitar bebidas alcoólicas de presente. Antes de me dirigir ao quarto e me desculpar com minha esposa, caminho em direção ao lavabo para botar uma água no rosto. O espelho estava embaçado devido à umidade e, ao limpar, algo estranho saltou aos meus olhos. Parecia haver um pingente pendurado no meu pescoço. É uma Dog Tag. Plaquetas de identificação do exército. Não lembro de ter tirado a minha do cofre. E bêbado do jeito que eu estava não conseguiria abri-lo. De fato… não estou usando nada no pescoço, mas o espelho mostra que sim. Como isso é possível? Estarei ainda sonhando? Aproximo meu corpo do espelho para ler as inscrições da plaqueta e me dou conta de que naquele momento eu não gostaria de ter acordado.

 “Benjamin, Elmer. B. – 98649577 – Católico.”

Sobre o autor: Publicitário de formação e Designer de função. Mais recentemente aventurando-se no mundo da Escrita. Fanático por filmes, séries, quadrinhos, games e histórias de Terror e Sci-Fi desde criança. Seu estilo flutua entre o sobrenatural, lendas urbanas, seres mitológicos e slashers, tudo ambientado em uma atmosfera vintage com elementos de terror dos anos 60 aos anos 90. Gosta da elaboração complexa de personagens, tramas, universos paralelos, simbolismos e easter eggs. E. G. Lopes costuma passar mensagens subliminares através de pequenos detalhes em suas histórias, às vezes quase imperceptíveis.

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Apresentado pelo enigmático Amadeus Cripta, guardião dos segredos mais sombrios escondido nas profundezas de uma antiga catacumba, "Ecos & Silêncio - Volume 1" é uma coleção imperdível de contos macabros que promete arrepiar até as almas mais corajosas. Neste volume você encontrará Vozes do Submundo, O Jugo da Escuridão, Safra Perfeita e Ventos Passados. Sente-se, relaxe e desfrute da escuridão.

Vozes do Submundo: Um conto cheio de aventura e criaturas sinistras, onde o irmão mais velho embarca numa jornada desesperada para salvar o mais novo.

O Jugo da Escuridão: Um jovem promissor, recém-promovido, é surpreendido pela violência à porta de sua casa. Durante treze dias, as coisas irão piorar expressivamente, mergulhando-o num abismo de desespero e medo.

Safra Perfeita: As coisas não vão bem na fazenda dos Maldonado. A filha do fazendeiro, Elisa, tem revelações terríveis e observará mudanças bizarras na fazenda. Será uma oportunidade ou uma maldição?

Ventos do Passado: A história de Celina. Uma mulher na meia idade, ávida por livros de romance. Desejosa por um amor idealizado, ela o recebe de onde menos espera.

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Ano: 2024

ISBN: 9786501106076

Páginas: 92

Papel: Polen 80g

Formato: 14x21cm

Acabamento: Brochura

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