Infelizmente, tenho sido prisioneiro da minha vida por muito tempo. Não consigo sair desta situação, por mais que eu queira. Estou preso em um redemoinho de rotina que gira e me puxa para baixo. E o que tem no fim do redemoinho? O ralo, o fim. Neste exato momento, estou na última volta.
Há vinte e oito anos, tive o encontro mais bizarro que eu poderia imaginar, até aquele momento. Foi uma madrugada de quinta-feira. O dia tinha sido uma merda completa. Eu vinha de uma série de empregos malsucedidos, tomando esporro e sendo mandado embora por idiotas da pior espécie. Naquela quinta, recebi uma chamada de atenção por esquecer de limpar o banheiro daquela espelunca: um posto de gasolina, caindo aos pedaços, na saída do bairro para a rodovia. Eu era o único empregado naquela joça. Frentista, atendente, mecânico e faxineiro. Porra dá um tempo. Eu sabia o que viria depois.
Eu me sentia mal, um zero à esquerda. Não pude dormir, então resolvi sair na varanda dos fundos, para fumar. Me arrependo amargamente. Eram 2h57. Eu acho. Peguei a carteira de cigarros e o isqueiro na mesa da cozinha, depois saí, tirei meu penúltimo cigarro, acendi e olhei para as estrelas. Quando voltei meus olhos para baixo, ele estava lá. Quase me caguei nas calças. Desculpe o palavreado, mas foi assim que me senti. Moro nas margens da cidade, o bairro é pobre e, depois dele, é mato e campo. Meu terreno é uma tripa de quinze por cinquenta. Bem, na época não era meu. Era dos meus pais. Eu morava em um barraco atrás da casa deles. Os fundos davam para um bosque de eucaliptos enormes, muito velhos. Imagino que o dono das terras esqueceu que eles existiam e nunca os colheu. A coisa estava lá, saindo de trás de um dos troncos robustos.
Era tenebroso, apesar da descrição que irei fazer logo a seguir. Estava a uns vinte e oito metros de mim, parecia um lençol ou um grande saco branco de tecido com buracos. Eu sei, é ridículo. Por baixo desse lençol tinha uma criatura ressecada, pálida, de olhos brancos e boca sem lábios. Os buracos eram grandes, dava para ver através deles. Ficou lá parado. Parecia estar agachado e balançava bizarramente como um louva-a-deus. Mas isso não era o pior. O pior era o irritante e constante bater de dentes. Não era como uma criança que bate os dentes de frio. Era proposital, forte e rápido, mas ritmado.
Eu não corri, não tirei os olhos dele, e ele não tirou os olhos de mim. Batia os dentes. Batia os dentes com força, e isso ecoava dentro da minha cabeça. Por dois minutos foi aquilo. Uma eternidade quando se está paralisado de medo. A cinza do meu cigarro, que queimava sem ser fumado, caiu sobre meu pé e isso tirou minha atenção dele por meio segundo. As batidas cessaram, e, quando voltei meu olhar para a mata novamente, não havia mais nada. Como se nunca tivesse estado ali. Nessa noite, não consegui dormir.
No dia seguinte, ainda impressionado com o acontecido e com apenas meia hora de sono, nem isso. Saí para minha tortura diária, naquele emprego de merda. Eu ia a pé, não tinha condições de ter um carro ou uma moto, e minha bicicleta havia quebrado no mês anterior. Óbvio que não possuia dinheiro nem para arrumá-la, quanto mais para comprar uma nova. Eu estava subindo a ladeira que sai do meu bairro e vai em direção ao próximo, onde fica o posto. Foi quando vi um pacote grande e amarelo no costado do meio-fio. Aquilo me chamou muito a atenção; a rua tinha movimento, mas todos pareciam ignorar aquilo. Peguei e era pesado. Perguntei para algumas pessoas que passavam, até mesmo bati na casa em frente ao local onde estava o pacote. Não tinha dono, então enfiei na mochila e segui meu caminho. Sabia que, se chegasse atrasado, aquele idiota iria me demitir. Eu fiz 21 anos naquela época, mas perigava tomar um couro do meu velho se chegasse com a notícia de ter perdido outro emprego.
O dia foi normal. Limpei o maldito banheiro. Por que as pessoas são porcas? Custa acertar o vaso? Custa jogar o papel cagado virado para baixo no lixo? Isso quando jogam no lixo. Tá louco. Voltei para casa, nem sequer parei na casa dos meus pais para dar um “oi”. Joguei a mochila no sofá, fui à cozinha e servi dois dedos de uma Coca sem gás que eu vinha economizando o quanto podia. Parei escorado no vão da porta enquanto pensava em como minha vida era uma porcaria e não tinha nenhuma perspectiva de melhorar. Em um estalo, lembrei do pacote. Não sei como pude simplesmente apagá-lo da minha cabeça. Tirei-o da mochila e hesitei antes de abrir. Eu fiz minha parte, não é mesmo? Queria entregar ao seu dono, mas ninguém se acusou. Teria dado a qualquer um que tivesse reivindicado a posse. Enfim, abri.
Eu deveria ter imaginado. O formato. Era óbvio. Ali estava um maço pesado de dólares. Acho que tinha cerca de mil e quinhentos dólares, não lembro exatamente. Era muita coisa para a minha realidade na época. Esse dinheiro não durou muito, troquei-o em uma casa de câmbio e logo se transformou em uma moto usada, alguns tanques de gasolina, duas calças novas e uma bela ida ao supermercado, bem reforçada e cheia de cerveja. Em um dia, aquela visão aterradora, no outro, essa sorte grande. Deveria estar ligada uma coisa com a outra.
Na mesma noite em que abri o pacote, esperei do lado de fora, na varanda, da meia-noite às 3h. Acabei com meu cigarro e a Coca insossa. Nada. Fiz o mesmo no dia seguinte e nada também. Pensei que era algum tipo de ilusão e que uma coisa não tinha a ver com a outra. Pois eu não poderia estar mais errado.
O pior eram as consequências de não entender o jogo ou falhar com ele. Na sexta-feira seguinte, cheguei em casa com minha namorada, após sair com alguns amigos. Transamos, fizemos um lanche e fomos dormir. Ela sempre dormia sobre meu braço e, por mais que ele estivesse morrendo, eu não me mexia até ela se virar. Encontrava-me nessa situação quando ouvi o bater de dentes. Batia forte, batia seco. Retumbava dentro da minha cabeça. Olhei para o relógio: 2h58. Estava tendo uma crise de loucura de novo, ou aquilo era real. Era muito real.
No outro dia, minha garota achou uma velha foto da ex. Depois de uma noite muito agradável, tivemos uma briga acalorada, que, a meu ver, era completamente descabida. Ora, era uma foto velha, estava ali porque eu não nasci assim que a conheci, tenho minha história. Enfim, terminamos. Eu fiquei acabado. Que idiotice. Que falta de sorte. O sábado foi morto, fiquei em casa remoendo aquilo enquanto bebia a cerveja que comentei. Estava tonto quando tomei o último gole da oitava garrafa. Olhei para o restinho no fundo da garrafa e me dei conta. A criatura. Tinham regras a serem seguidas. Eu devia estar com ela na hora certa pelo tempo determinado e então teria alguma sorte, caso contrário, teria azar. Ridiculamente simples. Tomei mais duas, tentando entender as nuances da regra e até divaguei sobre que ser era aquele. Não pensei por que estava acontecendo comigo, porém, eu mal sabia que logo pensaria nisso com muita raiva e pesar.
No próximo sábado, depois no domingo, na segunda e assim por diante. Com espaço de uma semana e um dia, eu tive aqueles encontros bizarros. Minha vida melhorou espantosamente. Nunca poderia me imaginar na posição que alcancei. Entendi a minha condição, eu sabia apenas que deveria manter os encontros nos dias e horários marcados, para ter benesses da criatura. No entanto, a vida do meu pai foi cobrada na hora que supus que a aparição me encontraria em qualquer lugar, tendo apenas hora e dia certo. Ela possuía seu domínio, não estava ligada a mim em primeiro lugar, mas sim ao local. Aparecia somente nos fundos do terreno que herdei de meu pai e minha mãe. Então, me vi preso em uma rotina e um local. Poderia ter tudo que quisesse se ficasse exatamente onde estava. Muitas noites olhei para aqueles olhos mortos e aqueles dentes amarelos, e pensei em como tinha virado um escravo daquela coisa horrenda.
Todo mundo sabe que, por mais que você não queira, imprevistos acontecem. Nas primeiras vezes, nem dei atenção, mas ao longo dos anos um detalhe me apavorava por completo e tomava meus dias. Além de uma doença cair sobre alguém que amo, meu cachorro ser atropelado, perder a carteira ou quebrar um dedo, havia mais. A cada falha minha com o contrato que não assinei, ele se aproximava. Cerca de um metro para cada vacilo. O que aconteceria quando chegasse em mim?
Nesses vinte e oito anos, construí uma família. Hoje tenho dois filhos lindos. Um já está bem longe, fazendo faculdade na capital. O outro é um belo adolescente muito inteligente, imensamente mais que o pai ignorante que vos fala. Minha esposa é minha garota, com quem não poderia viver sem. Fruto da sorte que ele traz. Apesar de tudo isso. tenho a agradecê-lo. Não sei se a criatura pode ver dentro da minha alma, mas se pudesse, já teria me cobrado Larissa e os garotos. Ou pensando melhor, talvez ele saiba que, se me tomar essas bênçãos, o jogo acabaria. Ele quer me torturar pelo máximo de tempo que conseguir. Será que se alimenta do meu medo e sofrimento?
Por muitos anos, eu impedi minha família de sair de casa durante os encontros às 2:58. Era estritamente proibido abrirem as janelas ou irem para os fundos da nossa luxuosa casa nova, construída sobre o velho terreno do meu pai. Eu não sabia se a maldição que me assola poderia ser passada para algum deles. Sempre houve perguntas, claro. Por que eu fazia aquilo? O que eram aqueles barulhos? Impossível não despertar a curiosidade de pessoas tão próximas, mas eles sempre me apoiaram e, graças a Deus, sempre acataram esse meu pequeno pedido.
Nos últimos anos, Larissa percebeu que algo tinha mudado. Eu estava tenso, sisudo e apreensivo constantemente. Era o ruído dos dentes batendo. Ficava na minha cabeça junto à imagem da criatura bem em frente à minha cara. Foram tantos erros que agora ele está a menos de vinte centímetros do meu rosto. O balançar bizarro parou, ele fica fixo, parado na minha frente. Eu posso sentir o hálito quente dele enquanto abre e fecha a boca com força, além de me fitar com aqueles olhos brancos e profundos. Em uma das noites, o pano bruto e surrado que o cobria tocou em mim. Isso gelou minha alma e quase desabei. Se eu desmaiasse, será que ele consideraria uma falha no compromisso? Não sei, não apaguei.
Hoje é uma quinta-feira. Uma ironia, pois vai terminar no mesmo dia que começou. Na semana passada, fiquei muito doente. Estou mais velho e, quando uma gripe me pega, me derruba. Isso me deixou acabado, sem poder levantar da cama. Não tive forças físicas nem mentais para ir lá fora. Bem, acho que não queria também. Já estou farto desse círculo infernal.
Mandei Larissa e o menor viajarem. Inventei qualquer desculpa para eles irem dar uma olhada no maior na capital. Eles adoram viajar, mas sabem que não posso me afastar daqui por muito tempo, então ficam felizes em mandar mensagens e fotos para contar tudo que fazem. São 2:58 e estou olhando as fotos que me mandaram hoje. Um almoço em família no shopping, algumas compras, sorrisos e mensagens de amor. Eu fui feliz e fiz a minha parte. Eles terão um futuro garantido e sem nenhum compromisso assombroso. A porta da varanda acabou de abrir. Os dentes estão batendo. Lentamente. Vindo me buscar. Adeus, meus amores.